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Cultura Música

Geração streaming se encanta com vinis durante a pandemia e faz caminho de volta do mp3 aos LPs

Com alta de 23,5% nas vendas, discos recentes com tiragem esgotada chegam a custar R$ 1 mil, preço similar a de raridades como 'Clube da Esquina'
Eduardo de Oliveira Junior (de camisa vermelha), Josiel Mobuto (de regata) e Guilherme Gonzaga escolhem discos na Casa da Mia, loja da galeria Nova Barão, no Centro de São Paulo Foto: Marco Ankosqui, SP/BRA / Agência O Globo
Eduardo de Oliveira Junior (de camisa vermelha), Josiel Mobuto (de regata) e Guilherme Gonzaga escolhem discos na Casa da Mia, loja da galeria Nova Barão, no Centro de São Paulo Foto: Marco Ankosqui, SP/BRA / Agência O Globo

SÃO PAULO — Comparado à praticidade do streaming, com um acervo gigantesco de discos a alguns cliques, ouvir LPs é muito mais complexo. Envolve escolher o toca-discos adequado para não estragar os vinis, agulha e cápsula, amplificador, pré-amplificador, mixer... Isso sem falar no espaço físico ocupado. Ainda assim, a cultura do vinil tem conseguido fascinar uma geração que já cresceu com a música digital, e pulou do MP3 para os LPs, sem passar pelos CDs.

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Uma turma que ajudou o vinil a registrar um aumento de 23,5% em seu faturamento de 2020, segundo relatório da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI) publicado na semana passada — um percentual de crescimento superior ao do streaming (18.5%). E que tem mudado também o perfil dos colecionadores, seja promovendo debates sobre diversidade ou aumentando o apelo por artistas brasileiros.

— A grande diferença para o primeiro revival do vinil, de dez anos atrás, para este da pandemia, é o interesse do público. — analisa o lojista João Paulo Bueno, à frente da Casa da Mia Discos, em São Paulo. — Se antes discos de Emicida e Criolo encalhavam nas lojas por preconceitos dos colecionadores, hoje o público abraça títulos novos da música brasileira, até de artistas obscuros.

Os sons e as capas

Bueno estava nas primeiras reuniões com a Polysom para reaquecer a cultura do vinil brasileira há dez anos, quando trabalhava na livraria Cultura. Hoje, a Casa da Mia fica na galeria Nova Barão, no Centro de São Paulo, que reúne 23 lojas focadas em LPs.  A reportagem passou uma tarde por lá — antes das restrições impostas pela Covid-19 voltarem a fechar o espaço — e encontrou colecionadores que abraçaram o vinil já durante a pandemia. É o caso do podcaster Eduardo de Oliveira Junior, de 24 anos.

— Eu tenho podcasts sobre música (Santíssima Trindade das Perucas e Disk Bicha) , mas me atraiu especialmente a parte gráfica do vinil, aquela capa grande, os encartes que quase sempre são lindos — explica ele, que tem cerca de 50 discos. — Eu só coleciono disco que vou ouvir muito, não tenho interesse em deixar disco parado em casa, ocupando espaço.

O publicitário Josiel Mobuto, de 29 anos, cresceu ouvindo vinis evangélicos por conta dos pais, e “nem sabia da existência de Jorge Ben Jor e Clara Nunes”. Foi quando o marido comprou uma vitrola, no começo da quarentena, para decoração.

— Avisei que não seria decorativa coisa nenhuma. Agora preciso me controlar para não comprar demais — brinca ele, que criou um método híbrido de audição de discos. — Quando um disco que ouço no streaming bate legal, logo procuro em vinil. Se tem, nunca mais ouço no streaming.

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Grupos de Facebook

Eduardo da Rocha, proprietário do Vinil na Net, viu verndas crescerem durante a pandemia Foto: Marco Ankosqui, SP/BRA / Agência O Globo
Eduardo da Rocha, proprietário do Vinil na Net, viu verndas crescerem durante a pandemia Foto: Marco Ankosqui, SP/BRA / Agência O Globo

Tanto Josiel quanto Eduardo fazem parte de grupos de Facebook, como o “Amigues do Vinil: Música Brasileira Moderna”, que, no isolamento, têm feito as vezes das lojas e feiras de garimpo, e também servem para debater música brasileira e organizar compras coletivas.

— Ajudamos a Tulipa Ruiz a vender uns 70 discos da lojinha dela, a (cantora maranhense) Dicy, que era pouco conhecida, também vendeu várias cópias do “Rosa semba” no grupo. É uma turma que começou a colecionar agora, gosta de música brasileira, de estimular a cena — lista o cinegrafista Guilherme Gonzaga, administrador do “Amigues” junto com o pesquisador e crítico musical curitibano Gabriel Bernin,  que criou o grupo a partir de episódios homofóbicos que sofreu em páginas de colecionadores mais tradicionais (e conservadores).

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Essa nova geração de colecionadores também provocou um fenômeno curioso: edições limitadas de LPs recentes, casos de “Em noite de climão” (de Letrux), “Sinto muito” (Duda Beat) e “Macumbas e catimbós” (Alessandra Leão) foram vendidos por cerca de R$ 1 mil no mercado paralelo. O valor se equipara ao de raridades como edições originais do “Clube da esquina” ou “A tábua de esmeralda” — o preço médio de um disco lacrado, hoje, é de cerca de R$ 110. Em comum, esses LPs foram lançados por clubes de assinaturas, como o Noize Record Club e a Três Selos, que se consolidaram no lançamento de novidades da música brasileira.

— Temos um cuidado de não matar o mercado com preços super altos. Vinil é caro, a gente sabe, mas um disco de R$ 120 bater R$ 700 dois meses depois de esgotar é meio surreal — opina João Noronha, um dos sócios da Três Selos, que já lançou LPs inéditos de Chico César, Mateus Aleluia, Karina Buhr e Jards Macalé. — Tivemos um salto de assinantes na pandemia. Uma turma que tinha grana para viajar, sair para jantar e que começou a gastar em disco, já que está em casa, com tempo para ouvir vinil.

Novos clientes, novos vendedores. Professor concursado, Eduardo da Rocha testemunhou o boom do vinil na pandemia. Sua loja virtual, a “Vinil na Net”, que antes era um trabalho paralelo, cresceu tanto que ele abandonou os dois empregos que tinha e adquiriu um galpão no bairro paulistano da Penha, onde vende discos usados para todo o Brasil. Lá, emprega toda a família e mais três funcionárias.

Consultor da Polysom, principal fábrica de discos do país que produz inclusive os da Noize e Três Selos, João Augusto admite que, quando a pandemia começou, ele achou que a viabilidade do vinil tinha chegado ao fim. Não só pelo temor da falta de clientes, mas também de matéria-prima: um incêndio numa fábrica fornecedora reduziu a oferta de acetato, insumo básico para a produção.

— Mas no mês de maio, as vendas de vinil e encomendas de fabricação explodiram. Consumidores passaram a comprar mais, clientes de fabricação surgiram de todos os cantos e contornamos a crise dos acetatos com verdadeiros malabarismos, apelando a todos os amigos da Alemanha, Holanda, Japão e Estados Unidos — comemora João. — O crescimento da fabricação em 2020, comparado a 2019, foi de quase 16%. A venda de LPs da Polysom cresceu 26% no período, mesmo com algumas faltas em estoque.