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Cultura Música

Gonzaguinha explode corações com sua trilha contra opressão e tristeza

Composições do artista, que morreu há 30 anos, ganham atualidade em tempos de pandemia e efervescência política, lembram filhos e músicos
Gonzaguinha em show em 1981: 30 anos de morte Foto: Aníbal Philot / Agência O Globo
Gonzaguinha em show em 1981: 30 anos de morte Foto: Aníbal Philot / Agência O Globo

Na manhã de segunda-feira, 29 de abril de 1991, Gonzaguinha deixava Pato Branco, no Paraná, após lotar o Clube Pinheiro com um show na véspera, quando o Monza que dirigia foi atingido por um caminhão apenas dez minutos depois de sair da cidade. Terminava ali uma uma carreira de duas décadas, iniciada no movimento universitário, e ficava para a posteridade um legado de 294 músicas compostas e 348 gravações, segundo o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, o Ecad.

Gonzaguinha contabiliza quase 800 mil ouvintes mensais no Spotify — à frente de outros artistas populares também mortos, como Clara Nunes (cerca de 650 mil) e João Nogueira (em torno de 185 mil) — e suas músicas, como “O que é, o que é”, sua composição mais gravada, continuam ecoando em 2021, ganhando novo fôlego.

— É importante lembrar o lado político do Gonzaga, presente mesmo em músicas românticas como “Explode coração” — lembra Daniel Gonzaga, filho mais velho do compositor que homenageou o pai com um show em seu canal, a Rythmica (www.ryhtmicawebtv.com), na última quinta-feira. — Quando diz “como se fosse o sol desvirginando a madrugada”, ele fala de liberdade, num viés político oculto. Dribla o ouvinte, driblava inclusive a censura. Acho que a genialidade dele está aí.

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Ao lado das irmãs, Daniel gerencia a Moleque Produções, que cuida da obra do pai, que morreu no auge do sucesso, aos 45 anos.

— Para mim, ele é o Machado de Assis da MPB — define. — Tem esse humor fino, cáustico, e trata muito do dia a dia, da vida das pessoas: o trabalhador, a fila do ônibus.

O fato de composições de 30, 40, 50 anos atrás soarem atuais, um senso comum aplicado a Gonzaguinha, Cazuza e outros, é recebido com um sentimento dúbio pelos filhos.

— Acho que tem dois lados — diz Nanan Gonzaga, cantora e atriz, que homenageou o pai com a peça “Cartas para Gonzaguinha”, apresentada entre 2018 e 2019, entre outros projetos. — Às vezes é triste. “Pequena memória para um tempo sem memória”, por exemplo, composta em plena ditadura, não deveria ser atual, mas é. Por outro lado, é claro que fico feliz por ele ser tão popular e gravado até hoje.

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Daniel acha simplesmente que “o Brasil andou para trás”. Maria Bethânia, a intérprete que mais gravou Gonzaguinha (“Trinta anos, já? Perdemos aquele menino lindo... Acho que ele virou passarinho”, lamenta), concorda em parte.

— O país evoluiu e regrediu — define ela. — Hoje Gonzaga estaria no palco, que era a tribuna dele, gritando pela vacina. Ele fazia música de resistência, contra a opressão, o tédio, a tristeza.

Surge, então, a discussão sobre a certa pecha de “chato” que foi colada ao artista, hoje enfraquecida. Bethânia acha que o tempo ajudou sua postura a ser vista com mais compreensão:

— A memória é mais reverenciada do que a presença.

A cantora Isabella Taviani, que tem Gonzaguinha como um farol, concorda.

—Ele era reservado, desconfiado, mas acho que quando morreu já não era visto com má vontade — diz ela, que decidiu ser cantora ao ouvir Simone em “Sangrando”, nos anos 1970. — Agora ele está por toda parte, em abertura de novela, sempre regravado.

O hino “O que é, o que é?”, celebração à vida que ganhou novo significado em tempos de pandemia, tem versões que vão de Bethânia e Beth Carvalho a Zé Ramalho, Padre Fábio de Melo e à regravação “mântrica”, em espanhol “Qué es, qué es?”, do grupo argentino Indra Mantras. Ela também serviu como samba-enredo do Império Serrano em 2019, na única vez em que uma música não composta para a avenida foi usada pra este fim.

— “O que é, o que é?” tem que ser cantada principalmente agora, que não há felicidade — diz Bethânia.

O legado de Gonzaguinha vai sendo levado adiante, por nomes como a cantora carioca Ilessi, além dos próprios filhos do compositor. Amora Pêra, nascida da união dele com a atriz Sandra Pêra, é integrante das Chicas (ao lado de Paula Leal e Isadora Medella; Nanan já fez parte do grupo), responsáveis pela primeira gravação de “Namorar”, no disco “Quem vai comprar nosso barulho?” (2006). A canção, que estava numa fita que Gonzaguinha deixou, foi registrada depois por Daniel em “Comportamento geral”, dedicado à obra do pai.

— Tivemos uma sorte estranha de ter esse imenso material, uma forma de estar com ele ao longo desses 30 anos — diz Amora, que na adolescência ouvia sem parar uma fita com uma longa entrevista do pai a uma rádio. — Não tivemos a conversa, as perguntas, mas tem muita coisa escrita. É uma espécie de formação, principalmente para quem segue o mesmo caminho profissional.

Os pedidos de regravações, de familiares ou desconhecidos, não param de chegar.

— Muitas vezes liberamos músicas de graça, ou por um valor simbólico — conta Daniel. — Só não permitimos o uso em campanhas políticas. Todo mundo sabe qual era o posicionamento dele.