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Covid-19: Demanda por ‘kit intubação’ explode, e 4 itens já estão completamente esgotados, aponta documento interno da SES

Sob as condições de compra estipuladas pelo Estado do Rio, empresas farmacêuticas ofereceram quantitativo bem abaixo da demanda
Atendimento a paciente internados na UTI do Hospital Miguel Couto, uma das unidades de saúde onde falta medicamentos do 'kit intubação', segundo aponta o documento da Safie Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo
Atendimento a paciente internados na UTI do Hospital Miguel Couto, uma das unidades de saúde onde falta medicamentos do 'kit intubação', segundo aponta o documento da Safie Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo

RIO — Um documento interno da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro protocolado na sexta-feira, dia 21, reconhece o esgotamento total de quatro medicamentos do chamado "kit intubação" , usado em pacientes com sintomas graves de Covid-19, nos hospitais que fazem parte do plano de contingência estadual contra a pandemia.

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Segundo despacho da Superintendência de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos da SES (Safie), "não há qualquer cobertura temporal" disponível dos seguintes fármacos: o bloqueador neuromuscular cisatracúrio (2mg/ml, 5ml), o analgésico fentanila (0,05mg/ml, 10ml), o sedativo propofol (10mg/ml, 100ml) e o naloxona (0,4mg/ml, 1ml), que reverte o efeito dos sedativos.

Documento da SES reconhece o esgotamento total de quatro fármacos do kit intubação. Foto: Safie-SES
Documento da SES reconhece o esgotamento total de quatro fármacos do kit intubação. Foto: Safie-SES

Para se ter uma ideia, a escassez dos fármacos pode estar atingindo, de formas diferentes, unidades da rede de contingência estadual para a pandemia. Entre eles, hospitais municipais como Souza Aguiar, Miguel Couto e Albert Schweitzer . Neste último, o RJTV, da Rede Globo, chegou a denunciar que pacientes intubados estavam sendo amarrados por falta de sedativos. Procurada, a Secretaria Municipal de Saúde negou a falta dos produtos em suas unidades, abastecidas pelo Ministério da Saúde e, em caso de escassez no mercado nacional de alguns itens, alegou que há substitutos. No estado, um dos grandes da rede de contingência é o Hospital dos Servidores. E, na rede federal, o Hospital do Andaraí.

As informações se baseiam num levantamento semanal que a Safie realiza desde julho do ano passado. O documento também ressalta que, nos últimos balanços, o consumo dessas fórmulas seguiu uma "tendência acentuada de elevação". Só em maio, segundo a Safie, 245.605 unidades de cisatracúrio já foram usadas, o triplo da média mensal de consumo calculada entre agosto de 2020 e abril de 2021. O gasto do rocurônio, um outro bloqueador neuromuscular, segue uma razão semelhante: 252.775 unidades já foram gastas em maio, enquanto a média mensal de consumo é de 81.898 unidades. Já o uso de fentanila se encontra no patamar das 501.457 unidades, o dobro do consumo médio mensal. E maio ainda não acabou, ressalta a Safie.

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Os dados mostram que a demanda dos remédios do kit intubação explodiu a partir do mês de abril, quando o estado do Rio atravessou a terceira onda da Covid-19. O consumo total de cisatracúrio e de rocurônio no mês passado foi três vezes maior do que em março, e o de fentanila, duas vezes maior.

A informação consta de um longo processo interno de aquisição de remédios para a intubação de pacientes. Ele foi instaurado no início de abril pela então superintendente de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos da SES, Carolina Lazzarotto. A servidora pediu ao setor de compras da pasta a reposição emergencial, por dispensa de licitação, de nove dos 21 remédios que integram o kit intubação, segundo especificações do Ministério da Saúde. No fim de março, em outro pedido de reabastecimento, Lazzarotto já chamava a atenção da Secretaria Executiva da SES para a possibilidade de uma “tragédia” como a de Manaus. Quase dois meses depois do primeiro alerta, a solicitação da servidora ainda não foi atendida.

O GLOBO apurou que Lazzarotto se desligou da Superintendência de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos da SES neste fim de semana, após assinar na sexta-feira o ofício que confirmou o esgotamento dos quatro fármacos. A assessoria de comunicação da SES não informou a razão do desligamento. A reportagem tentou contato com Lazarotto, mas não obteve resposta.

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O processo inaugurado em abril teve vários entraves e nenhum desfecho. Uma convocação para o fornecimento dos fármacos foi publicada no Diário Oficial do Estado e em jornais de grande circulação, mas a SES acabou recebendo propostas de empresas para apenas quatro dos nove medicamentos: cisatracúrio (2 mg/ml, 5ml), fentanila, naloxona e propofol.

Para duas dessas fórmulas, a provisão oferecida pela iniciativa privada ficou muito abaixo das quantidades previstas pela SES. No caso do propofol, a União Química, única empresa proponente, prometeu entregar apenas mil das 156.510 unidades solicitadas. O mesmo aconteceu com no caso da fentanila, em que a farmacêutica propôs fornecer 17,5 mil das 855 mil unidades requeridas pelo governo estadual. Apenas o cisatracúrio teve proposta de reposição integral: todas as 284.202 unidades solicitadas foram garantidas pela Oncovit Distribuidora de Medicamentos Ltda., com cada caixa saindo a um valor 7% maior do que a média de preço calculada pela própria SES. A Diskmed Pádua Distribuidora de Medicamentos Ltda., que tinha prometido todas as 10.170 doses de naloxona solicitadas pela SES, declinou de sua proposta quando o governo tentou negociar o preço de cada unidade, que sairia a um valor 34% maior do que a média de preço do mercado.

Valores acima da média

Frente ao impasse criado pela falta do kit intubação e pelo sobrepreço dos medicamentos que o compõem, a Subsecretaria Executiva da SES resolveu, nesta sexta-feira, dar prosseguimento ao processo de aquisição, com as quantidades e preços propostos pelas empresas. O órgão entendeu que, “diante do cenário caótico de desabastecimento, seria mais danoso à finalidade precípua da SES rejeitar qualquer proposta, pelo simples fato de as mesmas não terem atendidas a integralidade da quantidade inicialmente programada, do que adquirir este quantitativo e buscar meios para novas aquisições”. No fim das contas, apenas a compra de fentanila, propofol e cisatracúrio foi providenciada, em quantidades muito menores do que as previstas.

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Nos autos, o subsecretário executivo da pasta, Leonardo Ferreira, atribui a dificuldade de obtenção desses recursos à “majoração do preço dos medicamentos, que tem sofrido influência pela pandemia da Covid-19 em decorrência do aumento da demanda”. Segundo ele, um outro empecilho tem sido apresentado pelos fornecedores de insumos farmacêuticos não só neste caso, mas em outros processos de aquisição da SES: a crescente variação do dólar, “que tem influência direta sobre os preços dos medicamentos, uma vez que, em regra, suas matérias-primas são importadas ou até mesmo os próprios medicamentos prontos”.

Os medicamentos do kit intubação são providenciados pelo Ministério da Saúde. No entanto, diante da crise de abastecimento, a SES aderiu diretamente a uma ata de preços este ano. De acordo com o LocalizaSUS, 2.540.529 unidades dos 21 medicamentos do kit intubação foram distribuídos aos estados em maio. Um patamar semelhante ao total de março, período a partir do qual os hospitais do Rio de Janeiro — e do Brasil — começaram a registrar a escassez desses medicamentos.

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Procurada, a Secretaria Estadual de Saúde disse que o cenário do mercado internacional não garante abastecimento das redes públicas e privadas, mas que faz compras e mantém parceria com o Ministério da Saúde. A pasta disse que as unidades estão sendo abastecidas.

Já o Ministério da Saúde disse que acompanha semanalmente a disponibilidade de medicamentos de intubação em todo o Brasil, e que novas remessas estão previstas para as próximas semanas.

Leia a nota da Secretaria Estadual de Saúde na íntegra:

"A Secretaria de Estado de Saúde (SES), por meio da Superintendência de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos (SAFIE), informa que está empenhando todos os esforços em busca de alternativas viáveis para manter o abastecimento de unidades de saúde que atendem pacientes em tratamento de Covid-19 com anestésicos, sedativos e relaxantes musculares utilizados no processo de intubação de pacientes. Diante do cenário atual, no entanto, o mercado mundial não dispõe de capacidade para abastecer de maneira confortável as redes públicas e privadas. No entanto, todas as unidades têm sido abastecidas frequentemente.

Para isso a SES aderiu a uma ata do Ministério da Saúde (MS) para aquisição dos medicamentos e já obteve respostas positivas. Além disso, realiza um processo de compra para suprir a necessidade do estado nos próximos três meses. Todas as etapas dos processos são compartilhadas com o Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual e Defensoria Pública, visando dar transparência às aquisições.

A SAFIE ressalta que o suprimento desses medicamentos é de responsabilidade dos gestores da unidade hospitalar e/ou do município gestor. Entretanto, em apoio à crescente demanda do momento, a SES realiza repasse dos medicamentos enviados pelo Ministério da Saúde (MS) de forma equânime e com participação do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde (COSEMS), para as unidades e municípios.

As informações que se encontram na planilha mencionada foram repassadas por outras pessoas jurídicas, sendo dados de tramitação interna, já consolidados, e estão disponíveis nas páginas iniciais do documento citado."

Leia a nota do Ministério da Saúde na íntegra:

"O Ministério da Saúde distribuiu mais de 15,1 milhões de medicamentos para intubação (IOT) para todos estados e Distrito Federal, desde o começo da pandemia. Só em 2021, a pasta já enviou mais de 10,4 milhões de unidades para todo o país. Neste ano, para o Rio de Janeiro, foram distribuídos mais de 1 milhão de medicamentos – cerca de 225 mil só em maio. Novas remessas estão previstas para serem entregues nas próximas semanas.

Desde setembro de 2020, o Ministério acompanha, semanalmente, a disponibilidade dos medicamentos de intubação em todo o Brasil e envia informações da indústria e distribuidores para que estados possam realizar as aquisições. Esse monitoramento é feito e discutido em reuniões realizadas três vezes por semana envolvendo todos os Conselhos estadual e municipal do SUS, além de representantes da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)."

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