Saúde Coronavírus

'Vamos passar os EUA em mortes por Covid-19, apesar de termos população menor', prevê Miguel Nicolelis

Médico projetou, em entrevista ao GLOBO em março, que país chegaria aos 500 mil mortos pelo coronavírus no meio do ano
Miguel Nicolelis, médico, neurocientista e professor catedrático da Universidade Duke (EUA) Foto: Divulgação
Miguel Nicolelis, médico, neurocientista e professor catedrático da Universidade Duke (EUA) Foto: Divulgação

RIO — Em uma entrevista ao GLOBO em março deste ano, o médico, neurocientista e professor catedrático da Universidade Duke (EUA) Miguel Nicolelis previu que Brasil chegaria ao marco de 500 mil mortos pela Covid-19 em julho . Este número deve ser alcançado neste fim de semana, antes mesmo do previsto pelo cientista. Na avaliação de Nicolelis, o país já vive a terceira onda da pandemia do coronavírus que, por ocorrer no inverno, tem grandes chances de ser tão letal quanto a segunda.

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O professor alerta ainda que o Brasil deve ultrapassar os EUA em cidadãos mortos pela Covid-19 e acusa o governo federal de não ter se esforçado para evitar a tragédia causada pela pandemia.

Em uma entrevista ao GLOBO em março, o senhor fez uma previsão de que o Brasil chegaria a 500 mil mortes em julho. Devemos alcançar essa marca nos próximos dias. O que aconteceu com o país?

No dia 15 de junho do ano passado, tínhamos cerca de 50 mil mortos, e, nos próximos dias, vamos atingir os 500 mil. Em 12 meses tivemos um aumento de dez vezes nas mortes, algo explosivo. Isso mostra que o Brasil não olhou para essa pandemia com a seriedade e a gravidade com que ela deveria ter sido encarada.

A segunda onda produziu a maior mortalidade da história do Brasil para os meses de março e abril. Foram os dois meses mais letais da nossa história. Tudo isso porque não fizemos o que países que entenderam um pouco melhor a dinâmica desse vírus fizeram. Quando houve uma queda de casos e óbitos nós achamos que era o fim da pandemia, que não era preciso manter (as restrições).

O Brasil estava com 252 mil mortes em 22 de fevereiro deste ano. Elas dobraram em quatro meses. É algo assustador. E não aprendemos as lições. O governo federal conseguiu não fazer nada com eficiência, não tomou as decisões corretas, não criou um comando central, não houve mensagem nacional, não se fez um lockdown nacional, não se fez um bloqueio das estradas nem se fechou o espaço aéreo. E ainda não conseguimos vacinar as pessoas nos níveis necessários.

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E qual o cenário neste momento?

É o de uma pandemia novamente fora de controle, em meio a um colapso hospitalar que não foi sanado. Nunca saímos do colapso hospitalar iniciado em março e abril, fomos empurrando com a barriga. E nós temos múltiplas variantes do vírus entrando no país, uma vez que não resolvemos as fronteiras e o espaço aéreo. E, no meio de tudo isso, o Brasil joga futebol. A Copa América já resultou em mais de 50 pessoas infectadas, e isso só as diretamente envolvidas. Não temos a menor ideia dos números de pessoas que trabalham em hotéis e outros serviços, em contato com as delegações. É uma marca terrível sem uma luz no fim do túnel.

Qual o risco de enfrentarmos uma nova onda em pleno inverno?

A terceira onda já começou e vai seguir no inverno. Ela tem potencial letal extraordinário, tanto que já voltamos à média de 2 mil mortes por dia. Já somos, de novo, o país com mais mortes por dia, com aproximadamente 25% das mortes (por Covid-19) no mundo. A pandemia do coronavírus expôs toda a nossa falta de preparo político para lidar com as catástrofes do século XXI, como questões ambientais e de saúde. Os interesses políticos e econômicos parecem ser superiores à preocupação com as vidas humanas.

Vínhamos no último mês com uma queda na média móvel de mortes, ficando mais de trinta dias abaixo de 2 mil, mas o quadro reverteu. O que pode explicar essa oscilação?

Essa pequena queda era esperada pela própria dinâmica do vírus e por conta de algumas pequenas medidas paliativas. Ficamos em um platô altíssimo. Por algumas semanas a Índia passou o Brasil (em mortes por Covid-19) — mas  é difícil a comparação, pois os dados da Índia são subnotificados. Em dados oficiais o Brasil reassumiu essa posição terrível de maior número de mortes. Em março chegamos a mais de 4 mil mortes/dia. E a expectativa é que, com o inverno, com o relaxamento do isolamento e o não crescimento adequado da aplicação da segunda dose da vacina, a gente possa voltar nas próximas semanas aos níveis que tivemos em março, ou chegar bem perto disso. É como se o Brasil tivesse desistido de combater a pandemia neste momento.

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Há exemplos próximos para seguir?

O Chile vacinou mais de 60% de sua população mas achou que só a vacinação funcionaria. Então reabriram o país e depois tiveram que fechar. Um dos poucos bons exemplos da segunda onda que foi o de Araraquara, mas vai ter que fechar de novo, porque a taxa de ocupação das UTIs voltou a explodir e o número de óbitos voltou a aumentar.

É a estratégia sanfona: você espera cruzar de 80 a 90% de ocupação dos leitos de UTI — que, aliás, não deveria servir de norte desse jeito, pois isso não é um critério epidemiológico — para começar a fazer medidas paliativas, fechar algumas coisas e interromper alguns fluxos.

Por isso, há uma queda temporária, mas depois de algumas semanas você experimenta outras subidas. E as taxas de ocupação nunca caem sensivelmente. Estamos com equipes de saúde totalmente esgotadas e sem insumos médicos suficientes. E essa terceira onda, se vier na magnitude da segunda, vai pegar o país numa situação muito pior, do ponto de vista hospitalar.

Por que o sistema de saúde estaria em uma situação ainda pior?

Falta de insumos e equipes médicas depauperadas, dificuldade de aumentar leitos porque já estamos no limite, e com um sistema hospitalar que colapsou, com várias capitais com ocupação de UTI acima de 90%. Só precisamos olhar o que aconteceu na Índia para ver o que podemos experimentar sem um sistema hospitalar funcionando.

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O quanto essas novas variantes são preocupantes para o Brasil?

A variante indiana já representa 90% dos casos no Reino Unido e ela afetou crianças. Agora estamos vendo nos EUA, na Índia, no sudeste asiático e no Brasil o número muito maior de jovens e crianças infectadas. Por exemplo, no Mato Grosso do Sul, não são só as UTIs adultas lotadas, as pediátricas também estão. Em março eu vi as UTIs neonatais e as obstétricas lotadas. Estamos tendo um número muito grande de gestantes infectadas, o que é recorde.

A vacinação no Brasil deveria estar surtindo mais efeito?

A curva de vacinação atual mostra que o ritmo de aplicação da primeira dose está crescendo muito mais rapidamente do que a da segunda dose, que tem um formato achatado. Ela mal cresce diariamente. Temos apenas 11% da população vacinada com as duas doses, e isso é muito pouco. Já vimos que a eficácia da vacina é comprovada quando a média de vacinação completa é alta, mas a nossa ainda está muito baixa. E a imunização com uma dose só ainda é muito baixa. Então, para garantir a eficácia real, é preciso ter as duas doses.

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Esse seria então o momento de o Brasil implementar um isolamento mais severo?

Sem dúvida. Aliás, nós nunca fizemos isso. Quando você começa a observar o aumento de casos e óbitos, e dos níveis que eles já estão, a recomendação é essa. Em janeiro alertei que, se não fizéssemos um lockdown nacional, teríamos dificuldade de enterrar nossos mortos. E fomos de 250 mil para 500 mil em quatro meses. Essa métrica não dá para ser ignorada. Vamos passar os EUA e nos tornar o país com o maior número de mortes por Covid-19 no mundo, apesar de termos uma população menor. Só que lá a campanha de vacinação em massa feita desde janeiro deu resultado, eles já conseguiram alcançar cerca de 44% da população com as duas doses, e tiveram uma queda abrupta de 4 mil mortes por dia para 350 e reduziram mais de vinte vezes o número de casos diários.

Precisamos aumentar a vacinação, passando a vacinar de dois a três milhões de pessoas por dia, reduzir o fluxo de pessoas pelas rodovias, fechar o espaço aéreo para voos internacionais, principalmente de países onde novas variantes estão ocorrendo. E acredito ser preciso achar uma solução política para remover um governo que se negou a fazer tudo o que era preciso ser feito. A sociedade brasileira está totalmente desprotegida, a "Deus dará".

São dezesseis meses de pandemia, quase 500 mil mortos, e ainda não temos um comando central oferecendo diretrizes nacionais para se combater a pandemia. É inacreditável. Daqui a 50 anos, quando a pandemia for contada nos livros de história do Brasil, ninguém vai acreditar.