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Cultura

Pandemia provoca revolução sexual com maior uso de aplicativos e consumo de pornografia

Restrições impostas pela Covid-19 impulsionaram novos hábitos sexuais e mudaram relação com o desejo
Escultura 'Still in one piece III' de Johnson Tsang, obra do projeto Covid Art Museum Foto: Johnson Tsang / Divulgação
Escultura 'Still in one piece III' de Johnson Tsang, obra do projeto Covid Art Museum Foto: Johnson Tsang / Divulgação

O desejo tem força, o desejo tem asas. Mas aí no meio do caminho teve a pandemia, que bagunçou o coreto do conceito. Modulou a força, aparou as asas, ergueu muros. Com a quarentena, deixar a imaginação fluir se tornou praticamente a forma mais segura de adequar o prazer aos novos protocolos. Mais de um ano depois, por onde caminha o desejo?

Enquanto o mundo foi se fechando, sites de filmes pornográficos abriram suas portas, com amostras de conteúdo gratuito para entreter os confinados, e aqueceram seus números. A indústria de produções de “conteúdo adulto” teve que encaixar seu processo nos moldes do distanciamento social, diminuindo cenas com vários atores por conta do alto custo de testagem para Covid-19. Aplicativos de paquera, como Tinder e Happn, multiplicaram usuários em busca de um match para chamar de seu e registraram um sensível aumento na duração das conversas entre os adeptos.

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O tema, hábito sexual em tempos de coronavírus, está no horizonte de uma pesquisa que envolve cinco universidades do país. Também pulsa em trabalhos exibidos num museu virtual criado para dar corpo às aflições da alma quarentenada.

— A sexualidade é algo lúdico, envolve ficção, tem regras, relação com o outro. Com o cotidiano modificado pela pandemia, muitas vidas foram empurradas para a abstinência. Isso é fator de risco para a saúde mental. O corpo está confinado, mas a fantasia, não. E, se você não encontra uma solução, enlouquece — analisa o psicanalista Christian Dunker.

'Pandemic Love' de Santi Graph, obra do projeto Covid Art Museum Foto: Santi Graph / Divulgação
'Pandemic Love' de Santi Graph, obra do projeto Covid Art Museum Foto: Santi Graph / Divulgação

A busca por sanidade pode ser contabilizada. Os canais Playboy TV e Sexy Hot tiveram aumento de 13,1% e de 11,7%, respectivamente, no tempo médio assistido, entre setembro de 2020 e fevereiro de 2021, se comparado com meses pré-pandêmicos. Na internet, a curva segue o mesmo caminho, de alta. No primeiro bimestre deste ano, o site do Sexy Hot já superou em 33% as visualizações registradas em março e abril de 2020.

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— Essa tendência de crescimento já vem ocorrendo nos últimos anos, porém, por conta da pandemia, tivemos um aumento de intensidade — diz Cinthia Fajardo, diretora-geral do Grupo Playboy do Brasil, que administra o Sexy Hot.

Produtoras que, de início, não conseguiram surfar na onda do isolamento viram que o melhor era unir forças. Dez delas, incluindo Xplastic e SafadaTV, criaram em maio o streaming Quente Club.

— A pandemia mudou a forma de consumo. As pessoas estão dispostas a experimentar novos conteúdos — diz Roy LP, diretor-geral da LFV, que administra a plataforma.

A psicanalista Regina Navarro Lins sabe do que ele está falando:

— O desejo faz parte da sexualidade, da vida das pessoas. Se as pessoas estão confinadas e não podem transar como gostariam, elas se masturbam, transam pela internet com alguém do outro lado ajudando na excitação ou recorrem a filmes pornôs. E eles estão melhorando, repensando o prazer feminino, incluindo mais erotismo. As pessoas acabam se sentindo mais seguras vendo a pornografia, e me refiro àquela que não é violenta, discriminatória.

Tudo tem limite

O publicitário e músico Igor Doizeme, de 38 anos, é um desses. Solteiro e fiel ao isolamento, ele diz que, na falta do mundo real, buscou o virtual:

— Deixar de praticar sexo na vida real me fez recorrer aos filmes. Deixava para ver mais no fim da noite. No home office, é preciso estabelecer horários para tudo.

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Estabelecer limites também foi preciso. Mesmo com o mercado da fantasia aquecido, a pandemia levou as produtoras a reduzirem o número de lançamentos e a reverem protocolos. O Sexy Hot, que tinha previsto lançar 24 filmes em 2020, restringiu essa conta para nove, sendo três gravados na quarentena. Para baixar os custos e seguir as novas regras de prevenção contra a Covid, algumas das saídas foram reduzir o elenco, evitando cenas de sexo em grupo, e gravar com atores que já são casados.

A pandemia entrou explicitamente na história. “Oi, sumido”, lançado em janeiro, mostra um casal que decide se encontrar em meio aos protocolos de segurança. Para divulgar o filme, foi usada tecnologia de realidade aumentada, com o espectador tendo a sensação de que os protagonistas (o.k., uma versão tridimensional deles) estavam ao seu alcance.

Obra do projeto Covid Art Museum, 'Te espero depois da quarentena', de Nina Garcia
Foto: Divulgação
Obra do projeto Covid Art Museum, 'Te espero depois da quarentena', de Nina Garcia Foto: Divulgação

A atriz Mia Linz, de 29 anos, que estrela a produção, se divertiu com a reação dos fãs:

— Eu me tornei a companhia mais segura na quarentena. As pessoas me mandaram fotos me projetando em cima da geladeira, na praia...

'Boom da namoração'

Tão populares em tempos pré-pandemia, os aplicativos de paquera não ficaram off durante o isolamento forçado. Ao contrário. Números mostram que estiveram mais on do que nunca.

No Brasil, o Happn teve um aumento de 19% de inscritos no ano passado, o que representa 3,6 milhões de pessoas. O Tinder não divulga o número de usuários, mas um relatório de tendências mostra que a brincadeira de deslizar para a direita ou para a esquerda para aprovar ou rejeitar candidatos aumentou em 11%. Num reflexo de mudança de hábito, aponta que as conversas ficaram 32% mais longas do que as registradas no ano passado.

O Grindr, aplicativo voltado para o público gay, também registra novidade no comportamento de usuários. Uma pesquisa feita com dez mil pessoas em diferentes países, incluindo o Brasil, revela que 88% passaram a discutir mais sobre a Covid-19 para entender como o possível parceiro está se cuidando e avaliar se vale um encontro presencial. O flerte também mudou, ampliando o leque: 60% afirmam que, na pandemia, passaram a conversar com pessoas que antes não estariam em seu radar.

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O Tinder diz que quase metade dos usuários conversou por vídeo com o match na pandemia. No Grindr, 71% dos entrevistados disseram que apenas trocar fotos e vídeos já ajudou no confinamento, e 48% afirmaram ter tido encontros virtuais no período.

— Sou um fervoroso defensor de aplicativos de relacionamentos. Porque sou um psicanalista que viu a vida de pessoas da terceira idade mudarem completamente, viu neuróticos solitários se transformarem muito — diz Christian Dunker. — Há quem reclame que estas plataformas transformam pessoas em um açougue. Mas isso se você se tratar assim também.

Novas teses

A mudança de hábito sobre amor e sexo na pandemia não tem sido ignorada pelo mundo acadêmico. Um grupo de cinco universidades brasileiras (UFRGS, Uerj, UFMG, UFPE e UNB) está desenvolvendo uma pesquisa, chamada Sexvid, para entender os reflexos nas práticas sexuais dos brasileiros. Mesmo em estágio inicial, o estudo já consegue capturar o que o universo dos apps vem indicando.

— Percebemos que as conversas em aplicativos estavam ficando mais longas, porque os usuários passaram a fazer uma espécie de sexo mais investigativo (risos) — conta Paula Sandrine, doutora em Antropologia pela UFRGS e uma das coordenadoras da pesquisa. — Isso para entender como o parceiro está se cuidando, para tentar mapear um estilo de vida, calcular a distância, até para saber se para encontrar será preciso pegar transporte público ou ir a pé, se está trabalhando remoto ou não.

E como será o amanhã, depois que tudo isso passar? No estudo do aplicativo Happn, com 1.500 brasileiros, 77% afirmaram ter como resolução encontrar num novo amor em 2021. Por outro lado, 32% admitiram ter medo de voltar a ter intimidade com alguém.

— Certamente teremos pessoas com a síndrome da cabana, com medo do outro, porque passaram dois anos pensando que tinha ali um perigo — diz Dunker. — Mas também acredito no “boom da namoração”.