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Morre o pesquisador musical José Ramos Tinhorão, aos 93 anos

Jornalista era considerado um dos mais temidos críticos da MPB
O historiador e escritor José Ramos Tinhorão Foto: Sérgio Andrade
O historiador e escritor José Ramos Tinhorão Foto: Sérgio Andrade

Morreu nesta terça-feira, aos 93 anos, o pesquisador e crítico musical José Ramos Tinhorão, um dos mais respeitados historiadores da nossa música. A Editora 34, que lançou 18 dos seus livros, confirmou a notícia, e informou que ele estava internado há dois meses, com pneumonia. Sua saúde estava debilitado pela idade e por um AVC que sofreu há três anos.

O enterro está marcado para quarta-feira, às 13h, no cemitério dos Protestantes, em São Paulo.

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Publicou, ao longo de sua extensa carreira, por volta de três dezenas de livros — sendo o primeiro “Música Popular: Um tema em debate”, de 1966. Entre as obras de destaque, estão ainda “História social da Música Popular Brasileira”, “As origens da canção urbana" e “A música popular no romance brasileiro”. Passou por veículos como “Jornal do Brasil”, TV Excelsior, TV Globo, Rádio Nacional e “Veja”.

Apelido forçado

Foi no “Diário Carioca”, aos 24 anos, que o então estudante de direito e jornalismo José Ramos ganhou o apelido de Tinhorão — uma planta ornamental tóxica. Indicado por Armando Nogueira, o santista radicado no Rio desde os 9 anos trabalhava como copidesque e, ao assinar sua primeira matéria no “Diário”, levou um susto ao ver que a assinatura original de J. Ramos ganhou a companhia do apelido de redação. “J. Ramos é nome de ladrão de galinha, tem um monte na lista telefônica. Tinhorão vai ser só você”, justificou, à época, o então chefe de redação Pompeu de Souza, segundo a biografia do site do Instituto Moreira Salles.

Chute ou futurologia, o fato é que o chefe acertou em cheio: Tinhorão foi único. A partir de suas profundas pesquisas e da habilidade de contar histórias, o jornalista foi fundamental para mapear e analisar a música popular brasileira.

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Mas Tinhorão ficou marcado também pelo seu lado afiado — para não dizer polêmico. Arrumou briga com grandes mestres, como Paulinho da Viola, chamava Tom Jobim de “um coitado” e foi considerado, por muitos anos, a mais perfeita encarnação do temido crítico musical.

Na entrevista que deu ao GLOBO, em 2015, mostrou que o lado crítico seguia afiado.

— Não tem mais música brasileira para criticar — fuzilou.

Tinhorão justificava que procurava ver a história “de uma forma dialética”, batendo de frente “com as coisas que são aceitas por comodidade e interesse”.

De Chico e Roberto Carlos ao funk e sertanejo

Numa simples passada de olhos pelas últimas décadas da música brasileira, ele alvejava o iê-iê-iê (“uma simplificação do rock, um rock trocado em miúdos para otário”), Roberto Carlos (“no regime militar, ele era aquele menino que as mães até admitiriam como namorado das filhas”) e até Chico Buarque (“me diz uma composição nova dele de 20 anos para cá”). Afeições, só pelo pensador alemão Karl Marx (“nos princípios e na forma de ver a realidade, ninguém bate o velho barbudo”) e, vá lá, Zeca Pagodinho (“Zeca é malandro, pegou uma forma de fazer o que era considerado velho, ultrapassado, e deu uma bossa atualizada”).

Outra "vítima" recente de Tinhorão era, claro, os sertanejos, que trocaram o chapéu de caipira pelo de caubói.

— A música sertaneja é uma média de sons que não são urbanos, mas que também não são mais das populações rurais em si. É um nada — disse ele ao GLOBO, que, da mesma forma, não via virtudes funk carioca. — Isso tudo é coisa de moleque de Nova York. O funk não surgiu como necessidade de criação do povo brasileiro, mas como uma transposição. Ele pega elementos do maculelê e das cirandas? Ah, a bossa nova também incorporava coisas do samba tradicional.

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A bossa nova era um dos alvos preferidos de Tinhorão. “Filha de aventuras secretas de apartamento com a música americana que é, inegavelmente, sua mãe — a bossa nova, no que se refere à paternidade, vive até hoje o drama de tantas crianças de Copacabana, o bairro em que nasceu: não sabe quem é o pai”, escreveu em publicado em 1963, na revista “Senhor”. Na Festa Literária de Paraty (Flip), em 2015, mostrou que seguia na mesma linha: “A bossa nova tem ritmo de goteira e é puro jazz pasteurizado”.

Acervo gigantesco

Como todo bom pesquisador, Tinhorão era um colecionador de discos. Seu acervo chegou a ter cerca de 13 mil LPs, entre 76, 78 e 33 rpm, a biblioteca teve 14 mil livros sobre cultura popular e mais de 35 mil documentos, como partituras, jornais e fotografias.

O material gigantesco, revelou o jornal "O Tempo" em 2010, chegou a fazer Tinhorão ter que dormir num saco de dormir no quitinete para onde se mudou quando se separou. A história foi contada na biografia "Tinhorão - O legendário", assinada por Elizabeth Lorenzotti.

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Janio de Freitas, apontado como responsável para levar Tinhorão ao "Jornal do Brasil" no fim da decada de 1950, analisou o trabalho do pesquisador na contracapa da biografia, implicando certo preconceito da academia: "Entende-se: historiador com numerosas contribuições originais e desafiadoras, suas pesquisas preciosas e elaborações conceituais resultam em contestações diretas às ideias feitas da historiografia voltada para a música genuinamente popular e a formação social e cultural do Brasil".

O pomposo arquivo foi comprado pelo Instituto Moreira Salles em 2001, e Tinhorão comemorou a venda para permitir o acesso ao que chamava de "patrimônio intelectual". O IMS fez uma exposição com destaques do acervo.

— É muito triste, por mais que estivéssemos preparados para esse momento — lamentou a coordenadora de música do IMS, Bia Paes Leme. — Mas o pensamento do Tinhorão sobreviverá, tenho certeza, ganhando espaço e importância à medida em que o conceito de identidade cultural brasileira for sendo revisto. Ele enxergava fundo.

Jornalista e pesquisador musical, Sérgio Augusto, que publicou livros como "Este mundo é um pandeiro" e "Cancioneiro Jobim", também lamentou a perda, nas redes sociais: "Extraordinário historiador da cultura popular, especialmente da música tradicional brasileira. Discordava um bocado dele, mas aprendi à beça com suas pesquisas".