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Rio Patrimônio

Palácio Gustavo Capanema: possível venda da joia modernista no Rio é alvo de protestos de arquitetos e urbanistas

Inaugurado em 1945, o edifício, que tem painéis de Candido Portinari e jardins suspensos de Burle Marx, abrigou o antigo Ministério de Educação e Saúde
Palácio Gustavo Capanema, um marco da arquitetura moderna, foi construído no Centro do Rio com 16 andares Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Palácio Gustavo Capanema, um marco da arquitetura moderna, foi construído no Centro do Rio com 16 andares Foto: Leo Martins / Agência O Globo

RIO — A notícia de uma possível venda do icônico Palácio Gustavo Capanema pela União suscitou reações indignadas de arquitetos, urbanistas, entidades e de parentes de seus idealizadores. Marco da arquitetura moderna, o prédio de 16 andares no Centro do Rio — concebido por expoentes como Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Jorge Machado Moreira, Ernani Vasconcellos e Carlos Leão, sob a supervisão do franco-suíço Le Corbusier — integra uma lista de imóveis que o governo federal pretende vender à iniciativa privada. A listagem inicial ainda não inclui o Capanema, que passa por obras de restauração, mas a Secretaria Especial de Desestatização do Ministério da Economia admite que ele está apto a receber ofertas. Inaugurado em 1945, o edifício, que tem painéis de Candido Portinari e jardins suspensos de Burle Marx, abrigou o antigo Ministério de Educação e Saúde.

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Amparado na Lei 14.011, do ano passado, que flexibiliza exigências para alienação de imóveis da União, o governo federal elaborou um cronograma de “feirões de imóveis”nas principais capitais brasileiras. No próximo dia 27, o Rio vai inaugurar o programa, que permite ao mercado privado fazer ofertas para qualquer uma das 2.263 unidades federais listadas na cidade. Em parceria com a prefeitura, estandes serão montados com informações básicas sobre 300 prédios e terrenos pré-aprovados e suas regras de zoneamento. A lista inicial engloba os imóveis cujas vendas já têm o aval de órgãos que os ocupam, ou que estão ociosos. Nela estará, por exemplo, o edifício A Noite, na Praça Mauá, que foi sede da Rádio Nacional e passou por três leilões recentes, sem interessados.

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'Atestado de ignorância'

Filha mais velha de Lucio Costa, Maria Elisa Costa, de 86 anos, divulgou uma carta, na última sexta-feira, com o título “Inacreditável”. Ao relembrar as obras entre 1936 e 1945, afirmou que a construção “foi um marco definitivo na consolidação da arquitetura moderna não apenas no Brasil, mas no mundo. Ignorar este fato é um atestado de ignorância que o Brasil não merece”.

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— Quando fiquei sabendo da proposta, tomei um susto. Daí ter escrito a ‘carta-desabafo’, como se fosse um grito de alerta. Para mim (o palácio) é uma espécie de “membro da família”, querido e respeitado desde sempre.

Também na sexta, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), o Instituto de Arquitetos do Brasil no Rio (IAB-RJ) e outras oito associações e sociedades da classe assinaram um manifesto contra a venda do imóvel. “O MEC não pode ser vendido porque seu valor é incalculável. Quanto vale um prédio concebido, projetado e construído para ser um símbolo da cultura nacional? (..) Ele é a obra brasileira mais citada em livros de arquitetura, mundo afora, como o primeiro edifício monumental do mundo a aplicar diretamente os conceitos da arquitetura moderna de Le Corbusier (...)” diz a carta.

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Em nota oficial, a ABL também criticou a venda do Capanema: “A Academia Brasileira de Letras vem tornar público seu repúdio a essa ideia estapafúrdia e revoltante”.

Filho de Candido Portinari, João Candido Portinari explica que o Capanema abriga um dos acervos mais importantes da carreira de seu pai: a série “Ciclos Econômicos do Brasil”, que reúne 14 afrescos; quatro telas abstratas, algo raro em seu trabalho; o painel “Jogos Infantis”, considerado um “antiGuernica”, por representar um grito pela paz e o lado poético e lúdico das crianças; e os azulejos da fachada, um pedido do então ministro da Educação Gustavo Capanema, que dá nome ao edifício, para representar a origem da vida.

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— Eu julgava até que a notícia era fake, por ser um marco da arte e arquitetura modernas, e tombado. É um patrimônio histórico brasileiro, que guarda memória da nossa arte — disse João Portinari.

Para o arquiteto Sérgio Magalhães, que presidiu o Congresso Mundial de Arquitetos, no Rio, a simples hipótese de uma venda já é um “escândalo mundial”.

— O Capanema é seguramente uma das mais, se não a mais, importantes obras modernistas do mundo. É o primeiro edifício alto que usou os cinco princípios do movimento moderno, como fachada em vidro e esplanadas livres. A expressão máxima do modernismo, uma das maiores obras-primas da arquitetura mundial, e que deveria ser um equipamento para representar o país. Durante os preparativos para o Congresso Mundial, a grande procura era por visitas ao Capanema. Trocá-lo por alguns dólares é uma ofensa não só ao Rio mas ao próprio país.

O secretário de Governo e Integridade Pública do Rio, Marcelo Calero, não descarta recorrer à Justiça para impedir a venda do prédio, com base num decreto de 1937 que cria o conceito de patrimônio histórico no Brasil e num de seus artigos proíbe a venda de bens tombados.

— Estamos falando aqui da venda de algo que não tem preço. É importante lembrar que é um edifício que foi pensado para projetar a cultura nacional, para simbolizar a cultura nacional.

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Presidente do CAU no Rio, o arquiteto e urbanista Pablo Benetti lembra que o Capanema “é o prédio que colocou o Brasil no mundo”:

— É triste ver um governo que não cuida da memória.

Desde 2014, o Palácio Capanema passa por obras de restauração, num cronograma que sofre com atrasos. Em 2019, após finalização das obras nas fachadas e no terraço-jardim, que consumiram R$42 milhões, o governo federal liberou mais R$ 57,8 milhões para finalização das partes internas. O prazo inicial, porém, de 30 meses, não foi cumprido. Procurado, o Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (Iphan) afirmou que a nova previsão é de conclusão em abril de 2023. O prédio, apesar de tombado, não tem impedimento legal para venda, disse o Iphan.

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Desde 1996, o edifício também está inscrito na lista indicativa do Brasil para ser reconhecido como patrimônio mundial da Unesco. O arquiteto Carlos Fernando Andrade, ex-superintendente do Iphan, liderou, no início dos anos 2000, a campanha para esse reconhecimento. Além do valor histórico, Andrade diz que uma venda seria um equívoco financeiro.

— O preço de mercado nunca atingiria o valor simbólico que o palácio possui, acabariam vendendo por um valor menor do que a própria restauração. Há milhões de metros quadrados nessa cidade mais adequados para o mercado privado — afirmou Andrade.

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Avaliado em R$ 30 milhões

Na planilha do governo federal que reúne todos os seus imóveis, há informações, muitas vezes defasadas, de preços de mercado. No caso do Palácio Capanema, consta um valor de R$ 30 milhões, cerca de um terço de todo o seu custo de restauração. O secretário Diogo Mac Cord admite que nem sempre a avaliação é o valor real de mercado, e que a precificação será dada pela concorrência da iniciativa privada. Pelo novo programa, os laudos de avaliações serão de responsabilidade do interessado na compra. Se houver, então, aval para uma venda, o governo federal lançará um edital ofertando o imóvel pelo preço avaliado pelo potencial comprador, e outros interessados podem fazer lances. Na opinião de Mac Cord, a concorrência impedirá avaliações intencionalmente abaixo do valor correto.

— Qualquer empresa pode apresentar proposta para qualquer imóvel público. Invertemos a lógica, agora se houver interesse sobre o imóvel, tentaremos vender — explicou o secretário — Não sei quanto foi gasto na reforma do Capanema, mas com certeza ele foi mal gerido. Somos ineficientes na gestão desses imóveis. Queremos que a iniciativa privada faça melhor uso, para garantir o valor histórico.

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Defesa de uso de imóveis para habitação social

Além de repudiarem a venda do Capanema, urbanistas e arquitetos demonstraram preocupação sobre a nova legislação federal sobre os imóveis da União e a tentativa do governo ofertar unidades sem antes observar possíveis usos de terrenos e prédios ociosos para habitação social, como preconiza a Constituição.

A arquiteta e urbanista Luiza Bertin, da UFRJ, realizou sua monografia sobre a listagem dos imóveis federais no Rio. Segundo ela, há muitos dados imprecisos e defasados, que dificultam a qualificação e real compreensão desse inventário.  Ela destaca que a própria SPU possui resolução que prioriza destinação de imóveis para habitação social e regularização fundiária.

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— Essa política de mercantilização dos imóveis públicos tem sido divulgada pela atual gestão desde a campanha eleitoral. O ministro Paulo Guedes já dizia que ia alienar tudo que era possível. Quatro meses depois da nova lei que facilitou as alienações, o Ministério da Economia atualizou a listagem de imóveis e acrescentou informações sobre metragens, valores e até mapa virtual, com propósito claro de ofertar ao mercado. Leilões estão acontecendo, mas vão ampliar —diz Luiza, que é favorável ao uso do edifício A Noite para habitação social. — Pelos meus cálculos, lá seria possível abrigar cerca de 340 famílias.

O arquiteto e urbanista Lucas Faulhaber, membro do CAU - RJ, desconfia que o Capanema esteja sendo usado como um "chafariz" para divulgar o feirão. Ou seja, o Palácio dificilmente teria liquidez, hoje, no mercado imobiliário, mas o anúncio serviria para chamar a atenção para as outras unidades federais ofertadas.

— Não tenho a impressão de que ele de fato será vendido. Pode até ser desejo deles, pelo o que o prédio representa, porque sabemos do que esse governo é capaz, mas o mercado ainda está em crise — explica Faulhaber, que repudia a oferta de prédios icônicos, mas também os ociosos.— Acho preocupante todo o movimento de venda de imóveis públicos, porque na área central da cidade há várias unidades que poderiam servir para habitação social. Há demanda para moradia e não tem política pública para isso. Seria, então, mais efetivo usar esses terrenos para política de habitação, pois já superaria um grande obstáculo que é ter o terreno. Por outro lado, vender faria apenas cosquinha no caixa da União.