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Novo governo do Talibã deverá ser comandado por líder do grupo e 'não será democrático', afirma representante da milícia

Em entrevista à Reuters, Wahidullah Hashimi afirma que conselho de especialistas definirá novas regras de conduta, incluindo as relacionadas às mulheres; ex-presidente Ghani recebeu asilo nos Emirados Árabes Unidos
Combatente do Talibã passa diante de cartaz com imagens de mulheres cobertas por tinta spray no distrito de Shahr-é Naw, em Cabul Foto: WAKIL KOHSAR / AFP
Combatente do Talibã passa diante de cartaz com imagens de mulheres cobertas por tinta spray no distrito de Shahr-é Naw, em Cabul Foto: WAKIL KOHSAR / AFP

CABUL — Integrantes do Talibã afirmaram que o líder religioso do grupo, Hibatullah Akhunkzada, deve comandar o novo governo a ser formado pela milícia , de acordo com um representante do grupo em entrevista à Reuters. Segundo Wahidullah Hashimi, que tem acesso à tomada de decisões do grupo, o Afeganistão não será regido pelos princípios da democracia, mas sim pela lei islâmica, a sharia.

— Não haverá um sistema democrático porque isso não tem qualquer base em nosso país — afirmou. — Não discutiremos o tipo de sistema político a ser adotado no Afeganistão porque isso está claro. É a sharia.

Não ficou claro, contudo, que linha da lei religiosa será adotada. Muitos governos de nações de maioria muçulmana que usam os conceitos do islamismo como base legal são relativamente moderados. Já quando ocupou o governo, entre 1996 e 2001, o Talibã seguia uma linha própria dos conceitos do Islã . Seu governo ficou conhecido pelas violações graves dos direitos humanos e a perseguição a mulheres, minorias étnicas e grupos vistos como “hereges”, como os sufistas e os xiitas.

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No passado, o grupo expressava seu desejo de restabelecer um emirado islâmico no Afeganistão, e o tema era um dos maiores entraves nas agora enterradas negociações com o governo liderado por Ashraf Ghani, que tinha como objetivo principal a formação de um Gabinete de união nacional.

Depois da tomada de Cabul, o Talibã adotou um discurso aparentemente moderado, declarando que os direitos da população seriam respeitados, “dentro dos preceitos islâmicos”, o que acendeu um sinal de alerta, especialmente entre as mulheres. E as palavras de Hashemi à Reuters podem acirrar os temores de retrocessos.

— Nossos sábios decidirão se as meninas poderão ir ou não à escola. Vão decidir se elas deverão usar o hijab, a burca ou apenas um véu e a abaia, ou não. Caberá a eles — afirmou Hashimi, referindo-se a vestes usadas por muçulmanas com diferentes tipos de cobertura corporal. — Novente e nove por cento dos afegãos são muçulmanos, acreditam no Islã. Quando você acredita nas leis, deve aplicar aquela lei. Temos um conselho, eles decidirão o que fazer.

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Hashimi reconheceu que o formato do modelo final do governo ainda não foi concluído, mas deve se assemelhar à estrutura do primeiro governo Talibã, com um conselho governamental e com o líder Alkhundzada em um posto de supervisão, como era um pouco o papel do antigo líder, o mulá Omar.

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No modelo anterior, o conselho lidava com temas do dia a dia, e as decisões majoritárias passavam por Omar, como devem passar agora por Alkhundzada. Hashimi apontou ainda que o papel nominal de presidente, subordinado ao líder do grupo, deve ficar com um de seus três subordinados diretos, com destaque para o chefe do escritório político em Doha, o mulá Abdul Ghani Baradar . Ele não deu detalhes sobre o funcionamento do Legislativo ou do Judiciário no novo regime, temas que devem ser discutidos ainda esta semana.

Um ponto ainda em aberto, não mencionado por Hashimi ou por lideranças talibãs, é o papel dos políticos que comandaram o país desde a queda do grupo até a nova conquista de Cabul.

Oficialmente, existe um grupo de contato liderado pelo ex-presidente Hamid Karzai e pelo representante do antigo governo nas conversas de paz, Abdullah Abdullah, e os dois se reuniram com talibãs em Doha, no Qatar nesta quarta-feira. Ali, ouviram que o grupo "perdoou todos os ex-dirigentes governamentais, então ninguém está obrigado a abandonar o país", segundo relato do serviço de monitoramento SITE. Em seguida, Akhundzada anunciou, em comunicado, a libertação dos "prisioneiros políticos". Mas até o momento não há qualquer sinal de que Karzai e aliados poderão ser integrados a um governo do Talibã, ou se poderão exercer um papel político de fato neste novo Afeganistão.

Aviões de volta

Na entrevista à Reuters, Hashimi declarou ainda que vai incluir soldados e pilotos que integram as atuais forças de segurança do Afeganistão em um novo Exército, sugerindo que não haverá perseguição aos atuais militares. O Talibã reconheceu que muitos deles têm treinamento realizado por forças estrangeiras, e que isso poderia ser usado no futuro governo.

— Claro que teremos algumas mudanças, teremos algumas reformas no Exército, mas precisamos deles [soldados] e vamos chamá-los para que se unam a nós — afirmou, com especial ênfase aos pilotos da Força Aérea afegã. — Pedimos a eles que se juntem a seus irmãos, seu governo, estamos em busca deles para que voltem a seus postos.

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Hashemi ainda revelou que vai pedir o retorno de 22 aeronaves militares e 24 helicópteros usados por soldados ao fugirem do país e que hoje estão no Uzbequistão.

Enquanto as engrenagens do poder se movem em Cabul, o ex-presidente Ashraf Ghani, que escapou do país diante da invasão do Talibã, recebeu asilo nos Emirados Árabes Unidos ao lado de sua família, “por motivos humanitários”. Ghani liderou o país entre 2014 e 2021, e declarou que sua saída do Afeganistão foi para evitar um "banho de sangue".

Em vídeo publicado em suas redes sociais nesta quarta-feira, Ghani reforçou os motivos que levaram à sua saída, e demonstrou apoio à iniciativa de diálogo entre os talibãs e a antiga classe política do país. O ex-presidente revelou ainda que negocia seu retorno ao Afeganistão, sem dizer como ou quando isso aconteceria.

Contudo, ao comentar a presença de Ghani nos Emirados, a a subsecretária de Estado dos EUA, Wendy Sherman, afirmou que ele "não é mais uma pessoa importante no Afeganistão".