A construção de uma aliança política impossível

Foi, todos que lembram do episódio dizem, uma coincidência. Nada mais do que um acidente. Sandra Cavalcanti havia deixado a política. Tinha, naqueles fins de 1965, 40 anos. Havia sido uma secretária polêmica no governo de Carlos Lacerda, na Guanabara, mas seu grupo político perdera a eleição e ela queria se preparar, aproveitando o fim da primavera nova-iorquina, para retornar ao jornalismo. Uns amigos a convidaram para jantar na badalada El Morocco, conhecida pelos sofás zebrados, boate frequentada pela gente boa da cidade. E foi durante o jantar que se surpreenderam todos pela entrada de um ex-presidente da República.

Juscelino Kubitschek de Oliveira tinha 63 anos. Sua marca, e não havia brasileiro que não a conhecesse, era o sorriso plantado no rosto que parecia nunca ceder. Ele já vivia num autoexílio parisiense desde que o Golpe pusera no Planalto o primeiro general. Quase dois anos, já. Mas JK já tinha planos de voltar. Seria recebido por uma multidão no Aeroporto do Galeão, para alarme dos militares. Mas não ainda, não naquela noite. O ex-presidente, que estava sozinho, foi convidado a sentar. Sandra, uma leal seguidora de Lacerda e, portanto, num campo político oposto, se encantou com a simpatia do médico mineiro feito político. “O senhor aceitaria uma boa conversa com o Carlos Lacerda?”, ela então perguntou, no impulso. “Acho que ele vai precisar aprender com o senhor como é que não se fica deprimido.” JK riu e perguntou do rival, sobre como ele estava. E então, aproveitando a música, o ex-presidente estendeu a Sandra sua mão e a puxou para dançar um tango.

Lacerda, aos 51, estava desorientado. Tudo, simplesmente tudo o que planejou por tantos anos, o que imaginou, a rota que traçou, tudo tinha dado errado. Não era, o homem que estava para deixar o governo da Guanabara, um democrata convicto. Mas, paradoxalmente, era um ás na arte da política que só se consegue jogar com liberdade numa democracia. Não foram poucas as vezes, desde quando Getúlio Vargas ainda era vivo, que Lacerda flertou com a ideia de um Golpe de Estado. Quando não conspirou diretamente. Um período curto de autoritarismo, um, talvez dois anos, para rearrumar o Brasil e devolvê-lo a uma democracia funcional — segundo seus critérios. Para limpar os corruptos, os fisiológicos, e um bom pedaço da esquerda. Mas, quando enfim conseguiu seu golpe, viu que os generais aos poucos foram perdendo a vontade de convocar eleições para presidente. A presidência com a qual sonhava. Precisava fazer o que fazia bem. Política. E seu espaço de movimentação estava cada vez mais limitado.

Carlos Frederico Werneck de Lacerda pertencia à União Democrática Nacional. A UDN nasceu ao fim da ditadura do Estado Novo agremiando quem fosse antigetulista. Nasceu um partido liberal, mas como é tradição das colchas de retalhos partidárias brasileiras, terminou tendo mais conservadores do que liberais em seus quadros. Ainda assim, representava uma cultura política antiga no Brasil, que o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos batizou liberalismo doutrinário. Era a cultura representada por boa parte dos presidentes da Primeira República, que acreditavam no poder das instituições de Estado para formar a sociedade. Lacerda, um orador raro, não era liberal. Era, isto sim, um homem de temperamento autoritário que acreditava na centralização do poder.

JK também vinha de uma cultura política com raízes antigas. Seu Partido Social Democrata também nasceu do fim do Estado Novo, reunindo todas as lideranças do antigo regime que não se alinhavam à esquerda. Ainda mais colcha de retalhos. Havia lá reformistas e também conservadores, uma quantidade imensa de fisiológicos. Não houve legislatura, em toda a Segunda República que foi de 1945 a 64, na qual o PSD não fosse maioria no Congresso. Um grande MDB dos atuais. Embora não tivesse jamais conseguido fincar raízes nos dois mais importantes estados brasileiros — a Guanabara e São Paulo —, fizera dois presidentes. O marechal Dutra e ele, JK. Não bastasse ser pessedista, um partido no qual se encaixava como luva, era ainda um político formado na escola da mineiridade. Negociação, cautela, conservador, sempre disposto a conciliar. É claro que havia espaço para conversar com seu antigo rival.

Juscelino, que como deputado chegou a votar em Humberto Castelo Branco para presidente na eleição indireta pós-golpe, estava cassado. Lacerda já era um crítico aberto do regime e, por muito pouco, não fora também cassado pelo Ato Institucional de número 2. A ditadura já começava a se fechar. Castelo havia perdido poder e seu sucessor, Artur da Costa e Silva, era ainda menos convicto de uma abertura democrática. O que ambos, JK e Lacerda, miravam era um movimento que pudesse abrir espaço para uma eleição direta em 1970. Por meses, amigos em comum de um lado e do outro construíram o espaço para um encontro pessoal. Só que não bastavam eles.

Havia, afinal, uma terceira cultura política nascida dos escombros do Estado Novo. Uma cultura tão forte quanto a sopa de lideranças regionais do PSD ou o liberalismo dogmático da classe média urbana representado pela UDN. Era o trabalhismo, aquela força criada pelo próprio Getúlio, baseada em funcionários públicos e operários, com o projeto de um Estado forte, corporativo, atuante na economia. O PTB do presidente que Lacerda tanto trabalhou para derrubar. João Belchior Marques Goulart, 46 anos. O Jango, que vivia amargurado no exílio de sua fazenda no Uruguai, recebendo com constância visitas, sempre interessado em ouvir notícias da política de sua terra. Se o acordo era para incluir um trabalhista, não havia nome melhor do que Jango. O outro nome importante, o ex-governador gaúcho Leonel Brizola, era um homem que defendia pegar em armas e que cultivava seus rancores. As chances de sentar-se com Lacerda: nenhuma.

Não há nada de trivial na costura de uma aliança entre rivais políticos de mais de uma década. Todos tinham queixas um do outro. Lacerda sofrera uma tentativa de assassinato por parte de gente ligada ao PTB, e mais de uma vez apanhou na rua de militantes organizados. Era visto, por todos no PTB, como o adversário desleal que levara Getúlio ao suicídio, além de um dos incentivadores mais proeminentes do golpe que derrubara Jango. Uma das primeiras ações de JK no governo foi alterar a legislação para concessão de rádio e TV — proibindo a exibição de material obsceno e insultos a autoridades públicas. Sequer disfarçava: o objetivo era censurar Lacerda, tirar dele o palanque que dominava em ambas as mídias e que contribuíra para desestabilizar Vargas. Teve, talvez por isso, um governo tranquilo. Mas não foram poucas as acusações de corrupção feitas pelo corvo da UDN.

Só que acordos, quando há objetivos comuns claros, são sempre possíveis na política.

No dia 27 de outubro de 1966, quase um ano após o tango entre Sandra Cavalcanti e JK, a Tribuna da Imprensa publicou um manifesto. Levava apenas a assinatura de Lacerda, mas havia sido em partes reescrito por Juscelino e Jango o lera, dando sua bênção. Não bastava. Em novembro, o ex-governador foi a Lisboa visitar JK, que mudara o local de exílio após uma tentativa sem sucesso de viver Brasil. (Os militares o convocavam constantemente para depoimentos.) Juntos, publicaram um novo documento. A Declaração de Lisboa. Quando o corvo saía da casa de JK, um repórter o interpelou sobre a cordialidade entre os dois. “Quem vai dar esta resposta sou eu”, lhe respondeu o ex-presidente. “Combinei com o governador Lacerda que nós iríamos virar a página da história e sepultar o passado.” Anos depois, ele lembraria de ter dito a Lacerda naquele dia. “Jogamos a bomba. Esperemos, agora, a explosão.”

No início de 1967, foi a vez de Lacerda visitar Jango, no Uruguai. São quase inacreditáveis as fotos dos dois, sorridentes, conversando. Assinaram o Pacto de Montevidéu. Os principais líderes do Brasil pré-ditadura estavam juntos.

O objetivo da Frente Ampla era mobilizar a população. No início, eram artigos e entrevistas nos jornais, aproveitando-se dos resquícios que ainda haviam de democracia. Em dezembro de 1967, foram feitos comícios em Santo André, São Bernardo e São Caetano do Sul — o ABC paulista. Em abril de 1968, outros em Londrina e Maringá, no Paraná. Foi quando o estudante Edson Luís de Lima Souto foi assassinado pela polícia, no Rio de Janeiro, levando uma multidão da antiga capital ao enterro.

Em 5 de abril de 1968, Costa e Silva baixou uma portaria proibindo quaisquer atividades da Frente Ampla. Não havia mais espaço para se fingir uma democracia. Frentes Amplas, numa democracia, são possíveis.

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‘Mapa de apoios está desfavorável ao Irã e sua visão de futuro’, diz Abbas Milani

17/04/24 • 11:00

O professor Abbas Milani nasceu no Irã. Foi preso pelo regime do xá Reza Pahlavi. Depois, perseguido pelo regime islâmico do aiatolá Khomeini. Buscou abrigo nos Estados Unidos na década de 1980, de onde nunca deixou de lutar por uma democracia em seu país de origem. Chegou a prestar consultoria a George W. Bush e Barack Obama, numa louvável disposição de colaboração bipartidária. Seu conselho sempre foi o mesmo: o Irã deve se reencontrar com um regime democrático, secular, por sua própria conta. Sem interferências externas.

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