Ambição política moveu 'gabinete paralelo' de Bolsonaro, hoje principal foco da CPI da Covid

Associação de médicos defensora de remédios sem eficácia tinha integrantes em grupo que se aproximou do presidente na pandemia

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Brasília

O chamado "gabinete paralelo" ganha notoriedade à medida que a CPI da Covid avança. Sob holofotes de senadores e apadrinhados por Jair Bolsonaro, integrantes do grupo de suposto assessoramento ao presidente colecionam ambições políticas e oferecem consultas particulares para o tratamento precoce.

No Senado, a comissão busca apurar ações e omissões do governo no enfrentamento da pandemia do coronavírus. Nas investigações, o foco se deslocou para 14 interlocutores do presidente nesse gabinete.

Ao largo do Ministério da Saúde, são médicos, atuais e ex-assessores palacianos, um empresário bilionário e até um congressista que desprezaram a importância da vacina e enalteceram, em sintonia com Bolsonaro, a defesa de medicamentos sem eficácia comprovada contra a Covid.

Como a Folha mostrou, o gabinete paralelo participou de ao menos 24 reuniões no Palácio do Planalto e no Palácio da Alvorada.

Nelas estavam, por exemplo, a oncologista Nise Yamaguchi —em 5 encontros— e o deputado Osmar Terra (MDB-RS) —que foi a 11. Há elementos ainda da participação de mais seis médicos.

Além dos profissionais de saúde, são citados o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente; o assessor especial da Presidência Tercio Arnaud; o ex-secretário de Comunicação Fabio Wajngarten; o assessor internacional da Presidência Filipe Martins; o ex-assessor Arthur Weintraub, além do empresário Carlos Wizard.

Os senadores da CPI da Covid aprovaram na quinta-feira (10) a quebra de sigilo telefônico e telemático de quatro integrantes desse grupo. A medida possibilita o acesso a registros de conversas telefônicas, conteúdos de mensagens trocadas por aplicativos e histórico de pesquisas na internet.

Também transitou pelo Planalto o anestesista Luciano Dias Azevedo. Ele é um dos médicos mais influentes entre defensores do tratamento precoce contra.

Em depoimento à CPI, Nise afirmou que partiu dele, logo no início da pandemia, quando Luiz Henrique Mandetta ainda era ministro, a ideia de elaboração de uma minuta de decreto para mudar a bula da hidroxicloroquina e ampliar o uso para a Covid.

Azevedo esteve em duas reuniões do gabinete paralelo e ainda foi a um evento no Planalto em agosto de 2020, no qual entregou a Bolsonaro uma carta de médicos que defendem o tratamento precoce.

Na ocasião, ele disse integrar o movimento "Brasil Vencendo a Covid-19". Segundo Azevedo, o grupo conta com cerca de 10 mil médicos. O país hoje tem mais de 530 mil profissionais formados em medicina.

"Estamos juntos desde meados de abril nesta batalha contra a Covid-19. Nós entendemos que a Covid-19 é uma doença que tem tratamento e a melhor resposta acontece quando abordada precocemente", disse no evento.

O vídeo que contém a declaração de Azevedo foi divulgado em um dos canais oficiais do governo federal na internet.

No mês seguinte, em dos encontros do grupo de assessoramento no Planalto, o virologista Paolo Zanotto sugeriu a Bolsonaro a criação de "shadow cabinet" —uma espécie de "gabinete das sombras" para tratar da resposta oficial à pandemia da Covid. O tema veio à tona na CPI após circular vídeo da reunião.

"Talvez fosse importante montar um grupo, e a gente poderia ajudar a montar um 'shadow board', como se fosse um 'shadow cabinet'. Esses indivíduos não precisariam ser expostos à popularidade", disse Zanotto.

Na ocasião, o tema oficial do encontro foi "médicos pela vida" —justamente o nome da Associação Médicos pela Vida, aberta no Recife, que mantém um site com 201 membros favoráveis ao tratamento precoce.

A presença de integrantes da entidade na reunião do "gabinete das sombras" levou os senadores da CPI a colocar o grupo no radar também e associá-los como auxiliares do gabinete paralelo de Bolsonaro.

A especialização dos profissionais é variada. Na coordenação da entidade, por exemplo, há oftalmologista, anestesiologista, cirurgião-geral, pneumologista, epidemiologista. Não, contudo, nenhum infectologista.

No site da associação existe uma página chamada "encontre um médico". Nesse espaço, há contatos para a busca de consultas presenciais e de teleatendimento.

O governo desde o início da pandemia tem adotado uma linha parecida com a desses médicos, investindo no tratamento precoce, mesmo sem a eficácia comprovada de cloroquina, ivermectina e azitromicina.

Em depoimento à CPI da Covid, o coronel Élcio Franco, ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde, reconheceu que o governo adotou o atendimento precoce como estratégia principal para o enfrentamento da pandemia, com o "medicamento que o médico julgar oportuno".

São esses remédios que estão no cardápio dos Médicos pela Vida. Eles cobram preços variados pelas consultas e há até descrição no site de quais os tipos de medicamentos que receitam para Covid.

O médico pneumologista Blancard Torres, coordenador da Associação Médicos Pela Vida, por exemplo, que estava na reunião com Bolsonaro e Zanotto no Planalto, cobra R$ 650 por uma consulta e não aceita planos de saúde.

Ao lado de Bolsonaro na reunião de setembro, estava também o oftalmologista Antônio Jordão, um dos coordenadores da Associação Médicos pela Vida. Jordão já se aventurou pela política e entidades de representação de classe.

Ele foi filiado ao PT por dez anos, de 2003 a 2013, segundo dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Jordão ainda se candidatou em 2018 para as eleições do Cremepe (Conselho Regional de Medicina de Pernambuco).

Assim como ele, o médico Jandir Loureiro, também presente à reunião, se candidatou a vereador em Rio Bonito (RJ), na eleição municipal passada.

Também coordenador da entidade, defende o uso de remédios sem eficácia comprovada e que a vacinação não seja obrigatória.

Médicos do Recife ouvidos pela reportagem na condição de anonimato disseram que os colegas pró-cloroquina buscam "fama e poder". Desconhecem a ciência e são vistos como "inocentes úteis".

Nessa cruzada, os médicos propagam o tratamento precoce em eventos dos quais participam e também nas redes sociais.

O cirurgião-geral Eduardo Leite, outro coordenador da associação, fez diversas lives defendendo o remédio e colocando em xeque a qualidade de vacina. Segundo ele, elas "podem resultar em mais efeitos danosos do que em benefícios".

Em um vídeo, Leite disse que a CPI da Covid "tenta demonizar o tratamento precoce". Ele argumentou ainda que, se não houvesse a polarização entre os médicos, mortes poderiam ter sido evitadas.

'O tratamento precoce funciona em duas etapas. A primeira etapa, logo no início do tratamento, que é a parte viral, quando o medicamento que nós empregarmos vai diminuir o número de vírus, permitindo uma reação imunológica não exacerbada, podendo levar o paciente já à cura na primeira fase", afirmou.

Ele prosseguiu: "Em muitos casos, são necessários que se acompanhe o paciente e introduza outras drogas, que todos já conhecem a base de antiinflamatórios, antibióticos e anticoagulantes. Essa é a base, mas esses medicamentos sem a monitorização e sem o acolhimento são menos eficazes".

À Folha o Cremepe afirmou que investiga o grupo. No entanto, o conselho disse que a análise das denúncias contra os médicos correm em sigilo para não comprometer as apurações. Além disso, o MPF (Ministério Público Federal) em Pernambuco também abriu um procedimento para acompanhar as providências adotadas pelo Cremepe no caso.

A Associação Médicos Pela Vida disse, em nota, que desconhece qualquer tipo de “gabinete paralelo”. Além disso, repudia toda e qualquer especulação sobre a atuação da entidade, seus associados e apoiadores.

“Jamais o MPV atuou ou atua com objetivos políticos. Ações individuais dizem respeito exclusivamente aos cidadãos e participantes do grupo tem sua liberdade política, de credo e todas as demais constitucionalmente garantidas”, informou.

A associação afirmou que existe uma tentativa de politizar a saúde e a Covid-19. “O maior exemplo disso é a CPI da Pandemia do Senado Federal, que tem distorcido suas atribuições de debater, discutir, buscar soluções práticas e rápidas para o crítico momento do país.”

Enquanto isso, os medicamentos sem eficácia comprovada contra a Covid tiveram um salto nas vendas durante a pandemia, segundo dados do CFF (Conselho Federal de Farmácia).

A venda de hidroxicloroquina subiu 126%, da ivermectina, 857%, e da azitromicina, 71%.

Os dados são de abril de 2019 a março de 2020 em comparação com abril de 2020 a março de 2021, quando a pandemia já havia começado no país.

"Toda vez que se opta pelo uso off-label [fora da bula] do medicamento, esse uso representa um risco a mais para quem vai utilizar. Haja visto que o uso não está baseado em evidências conclusivas sobre a segurança e o benefício do uso de medicamentos", disse Wellington Barros, consultor do CFF.

O CFM (Conselho Federal de Medicina) disse, em nota, que queixas envolvendo a atuação profissional de médicos podem ser feitas nos conselhos regionais dos estados onde ocorreram os fatos para que sejam devidamente apurados.

Paolo Zanotto e Luciano Azevedo foram procurados pela reportagem. Não houve retorno até o encerramento do texto.

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