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Rita Lee, sobre o Brasil: 'Era para a gente estar nos Jetsons e estamos voltando para os Flintstones'

Enquanto trata um câncer no pulmão, cantora lança música, abre exposição, escreve livro infantil sobre morte e reflete: ‘Minha missão é levar alegria às pessoas’
Super Rita Foto: Guilherme Samora
Super Rita Foto: Guilherme Samora

Desde sexta-feira, fãs de Rita Lee e ouvintes da boa música podem viajar pela infância e por momentos marcantes dos 50 anos de carreira da maior roqueira do Brasil. Em megaexposipção inaugurada no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, imagens e objetos da caçula da família Jones (que adorava brincar no porão de casa com as irmãs, Mary e Virgínia, e via discos voadores na varanda), fundem-se às de Rita vestida de noiva no Festival Internacional da Canção, usando o manto de Nossa Senhora no Hollywood Rock e lançando os selinhos que virariam a marca de Hebe Camargo.

“Guardo roupas, figurinos, instrumentos, todo tipo de tralha. Está tudo lá no MIS. É uma viagem colorida e pop. Disneylândia glitter”, resume Rita, aos 73 anos, em sua casa, em São Paulo, onde mora com o marido e parceiro musical, Roberto de Carvalho.

Em rara entrevista — a primeira desde que recebeu, em maio, o diagnóstico de câncer de pulmão —, a cantora esbanja energia e bom humor, mesmo sob tratamento quimioterápico. Fala sobre “Change”, música inédita que soltará amanhã nas plataformas digitais; conta que, em dois meses, lançará novo infantil pela GloboLivros, abordando a morte de um jeito lúdico; e discorre sobre conversas e prazeres que anda tendo com estrelas e “seres de luz”.

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A seguir, os melhores trechos da conversa:

Relação com os fãs

“Me chamam de santa, de fada e de ET também. Eu adoro! Acho que eles sacam essa minha ligação com o extraterreno. A garotada — até hoje — se identifica com ‘Ovelha Negra’, diz o quanto a música os representa. Então, eu me sinto uma padroeira das ovelhas negras ( risos ). Nunca pensei — enquanto componho — que minha música poderia afetar alguém. Mas em um lançamento de um livro infantil meu, antes da pandemia, um garoto bem jovem veio ao meu lado e cochichou no meu ouvido: ‘Minha família não aceitava o fato de eu ser gay, não me entendia. Já tinha decidido me matar, mas sua música me salvou’. E saiu andando. Até hoje eu me lembro dele.”

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Mundo colorido

“Me enche o saco quando ouço pessoas preconceituosas reproduzindo papos de que ‘a mulher é inferior ao homem’, ou dizendo que ser gay é errado... O que é errado? O diferente de você é errado? Eu quero é o diferente. Quero viver num mundo colorido, com todo tipo de etnia, pele, cabelo, gente, bicho, planta e de ETs — mesmo que disfarçados — andando por aí. Eu sou do arco-íris, gosto da luz. Me enche o saco o racismo, a misoginia, a homofobia. Não tenho paciência para isso! Eu ‘tô’ velha! Eu queria chegar em 2021 e perceber mais respeito no mundo. E não ter que continuar falando sobre isso. Mas só se muda com educação. Respeito, educação e liberdade. As pessoas têm de ser livres para serem felizes como elas são. Está tudo muito difícil no mundo, precisamos de mais luz e de mais alegria.”

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Missão de vida

“Nós, humanos, não viemos à Terra a passeio. Mas, sim, para aprender, para nos conscientizarmos. Para seguir para o caminho da luz. Não dá para fechar os olhos para o sofrimento alheio. A gente é uma coisa só. Quando vemos um humano sofrendo, um humano sendo maldito, maltratando bicho, assassinando o próximo, as doenças, a injustiça... essas são as trevas. Mas a vida é feita de luz e de sombra. Então, temos também o colorido, a iluminação. E vendo o lado trevas, me comovo. Por isso, tento tirar um pouco da tristeza das pessoas cantando para elas coisas para cima. Minha missão ( de vida ) sempre foi levar alegria para as pessoas.”

Rita Lee Foto: Guilherme Samora
Rita Lee Foto: Guilherme Samora

Música nova

“‘Change’, que lanço oficialmente amanhã, é minha música nova em parceria com meu amor, o Rob ( Roberto de Carvalho ), maestro do bom gosto, chique, gostoso e talentoso. Meu parceiro musical perfeito e pai dos meus filhos. A coprodução é do Gui Boratto, que a gente convidou pois estava querendo dar uma passeada nesse universo mais dançante. E a música tem a ver com esse meu lado mutante, que tenho desde que nasci. O que a gente mais quer no mundo nesse momento? Mudar! Mudar para melhor, para mais consciência, mais luz.”

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Tesão na alma

“Tudo muda o tempo todo. Aos 73 anos, por exemplo, tenho meus cabelos brancos. Já fui loira, já fui ruiva — que era um sol na cabeça — e agora tenho a lua comigo. Sinto também um vetor da vida que transforma o desejo. Já transei para caramba e, agora, tenho mais ‘tesão na alma’. Um prazer que é despertado por um bom livro, meditação, quando tento me comunicar telepaticamente com irmãos das estrelas, com meus rituais espirituais... Então, mude! Já que não tem jeito mesmo, abrace a mudança. Com essa música, gostaria de dar um upgrade no lado legal, quero viver no arco-íris, na coisa bacana, na pureza, na coragem, na liberdade... apesar desse momento tão escuro que o Brasil enfrenta.”

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Seres de luz

“Fiz um pacto com o universo, com o Criador, com os ‘seres de luz’, de que ia segurar a barra de ter um câncer no pulmão. Fiz a radioterapia e agora faço quimioterapia. Os exames estão ótimos. Mas fácil não é. Vi minha mãe passar por isso: quimio, radio... e, há 45 anos, a medicina era muito diferente. Tinha trauma do jeito que ela ficou. Então, quando o médico falou que precisava fazer o tratamento, a primeira coisa que pensei foi: ‘Eu sabia!’. Sabe por quê? Por causa dos sinais que recebi. Sabia que iria acontecer algo. Quantas vezes não disse que teria de pagar algum pedágio da vida? Era um sopro atrás do outro: ‘Pare de fumar. Você fuma desde os 22 anos, pare agora’. Era como uma luz que acendia no fundo da mente. Fora as coisas que me eram esfregadas na cara. Ia ler jornal, e estava lá uma personalidade dizendo que havia parado de fumar. Estava na estrada, parava atrás de um caminhão e estava escrito: ‘Pare de fumar’. Com a pandemia, aquele baixo-astral no mundo, não tem como não ser afetado: passei a fumar o triplo de antes. Tenho essa coisa de católico, de culpa, e continuei a me desrespeitar. E quando o médico falou: ‘Você está com câncer no pulmão’, fechei os olhos e pensei: ‘Danadinhos, sarcásticos’. Os ‘seres de luz’ têm humor! Olha que humor muito louco. Era como se pudesse ouvi-los me falando: ‘Cara, a gente te avisou. Agora, vai parar de fumar na marra’. Eu, no fim, até agradeci. Não é fácil, mas consegui parar de fumar, finalmente.”

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Morte para crianças

“Quando criança, perdemos um pouco da inocência ao adquirir a consciência da morte. Geralmente, não queremos falar desse tema com crianças. E isso passa para elas uma impressão de algo muito ruim. Do medo da morte. Quando temos que entender que tudo o que existe no universo passa por transformações. E a nossa transformação é em espírito. Somos espírito num mundo material, fazendo uma viagem. Às vezes, quando morre uma pessoa ou um bicho, dizem : ‘Mamãe virou uma estrelinha’, ‘seu bichinho virou uma estrelinha’. Criança gosta de honestidade. Então, vou dar um toque de forma leve sobre o assunto.”

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Homenagem em vida

“Sonho antigo, a exposição ( do Museu da Imagem e do Som de SP ) finalmente aconteceu! Guardo roupas, figurinos, instrumentos, todo tipo de tralha desde sempre. E agora, tudo faz sentido, não é? É uma viagem colorida e pop. Meu baú, todo aberto, no MIS. Disneylândia glitter. Todas as peças contam uma história. Mas ao vestido de noiva que Leila Diniz usou e depois me emprestou ( em 1968 ) e à bota prateada da Biba ( famosa butique londrina dos anos 1970 ) dou bastante valor. Também achamos que ficaria simpático ter minha voz narrando as histórias das peças ( a exposição terá QR codes e o visitante poderá ouvir Rita contando sobre seu acervo ).”

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Varinha de condão

“Se pudesse fazer um ‘plim’, com uma varinha de condão, seria para ajudar o Brasil, ajudar os nossos bichos, ajudar a natureza... mandaria muita gente poderosa para a Idade Média. É assustador ver gente no comando com mente tão ultrapassada. Era para a gente estar nos Jetsons e estamos voltando para os Flintstones. O Brasil parece ter um carma estranho... acho que isso começou com o genocídio indígena. Ontem, estava vendo na TV uma velha indígena, do (povo) Krenakore. Ela falava: ‘Nós tínhamos um rio. Eu tinha todo tipo de cura na natureza’. E tiraram o rio dela! É desrespeito atrás de desrespeito com indígenas, com bichos — que são tratados como coisas. Se a gente não parte disso, como é que vamos mudar alguma coisa para melhor?”