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O “fim” da Mad, a maior revista de humor do mundo

Com baixa vendagem, a publicação americana não terá mais conteúdo novo pela primeira vez em 67 anos
Alfred E. Neuman é o mascote da revista Mad Foto: Divulgação / Arte
Alfred E. Neuman é o mascote da revista Mad Foto: Divulgação / Arte

Foram 550 números, 22 edições internacionais e milhares e milhares de páginas de charges, tirinhas e piadas em geral. Mas, depois de 67 anos, a revista Mad , que se tornou um ícone do humor mundial, anunciou o fim da publicação de novo conteúdo. A notícia entristeceu fãs de quadrinhos em todo o mundo, mas como resumiu o comediante e dublador dos Simpsons Harry Shearer, “uma instituição americana fechou. Quem quer viver uma instituição?”.

Certamente não a Mad , que foi fundada por Harvey Kurtzman em 1952 para revolucionar o humor americano, não poupando nada nem ninguém de seus desenhos e caricaturas ácidos e senso de humor subversivo. Ao longo de suas décadas, ela influenciou dezenas de quadrinistas pelo mundo, mudou o formato do humor impresso e até criou um ícone pop: Alfred E. Neuman, seu mascote de sorriso debochado, figura carimbada em todas as capas da revistas e que trazia sempre o bordão “Quem? Eu, me preocupar?”. Esse, inclusive, é um bom resumo da postura da revista que passou por poucas e boas ao longo de sua publicação.

Para Dorinho Bastos, cartunista e professor do curso de Publicidade na USP, era essa veia satírica que fez a cabeça dos jovens ao longo de décadas: “Era uma revista mais escrachada. A Mad não era tão ideológica, mas era forte na crítica de costumes e da cultura popular. Foi um marco”.

O nascimento da Mad é, em si, uma anedota que mostra o improviso e irreverência como marca maior da publicação. Seu criador, Harvey Kurtzman, escrevia gibis para a editora Entertaining Comics, onde era pago por volume de conteúdo entregue.

William Gaines, o publisher da Mad Foto: Cheryl Chenet / Corbis via Getty Images
William Gaines, o publisher da Mad Foto: Cheryl Chenet / Corbis via Getty Images

Fascinado por histórias de guerra, Kurtzman vivia a duras penas com o salário recebido pelo par de revistas que assinava, ambas trabalhosas e fruto de uma pesquisa meticulosa. Isso até receber uma proposta de seu publisher, Max Gaines. O objetivo era pensar e pesquisar menos, e daí a oferta: “Por que você não faz uma revista de humor?”.

Desde o início, a Mad de Harvey Kurtzman contou com a colaboração de ícones da banda desenhada, como Wally Wood, Will Elder e Jack Davis, mas precisou mudar de formato ainda na infância. Para driblar o draconiano Comics Code Authority, um órgão de censura vigente nos Estados Unidos durante os anos 50, o editor transformou a hq em revista. Dali para a frente, nada mais foi o mesmo.

“Foi criado um novo tipo de revista que teve 1.000 imitações. Era voltada principalmente para adolescentes. E esse jeitão de fazer a revista, tirando sarro da cultura pop, fez sucesso”, conta Ota, cartunista que comandou a edição brasileira da Mad por muitas décadas.

Chegando ao auge de circulação de 2 milhões de cópias em 1974, já sob a batuta de Al Feldstein, que comandou a revista em seus anos de ouro, a Mad marcou época na imprensa internacional por fazer críticas ácidas em todos os campos da vida pública. Não importava se era o presidente dos EUA ou a maior estrela de Hollywood, o Batman ou Jon Snow: ninguém escapava do deboche da revista.

A postura combativa, porém, não se limitava às figuras públicas. Ao longo de suas muitas décadas de história, a Mad se tornou famosa pelo trabalho autoral de seu estrelado time de colaboradores. Cartunistas como Al Jaffee, Don Martin — conhecido como o “artista mais louco da Mad” —, Sergio Aragonés, criador de clássicos como “Groo, o Errante”, e Antonio Prohías, mente por trás da série “Spy vs Spy”.

Apesar do impacto profundo que causou na cultura pop mundial, a revista que chegou a virar série de tv não vivia seus melhores anos. Isso fica claro ao olhar para um episódio recente: O presidente dos EUA, Donald Trump, chamou Pete Buttigieg, um dos candidatos à primária do partido democrata, de Alfred E. Neuman. A resposta de Pete? “Não conheço Neuman. Tive de procurar no Google”.

Série de quadrinhos Spy x Spy era uma das mais populares da Mad. Contada sem balões com diálogos, a história mostrava o conflito eterno entre os dois personagens, num interminável jogo de espionagem e sabotagem, com resultados cômicos Foto: Divulgação
Série de quadrinhos Spy x Spy era uma das mais populares da Mad. Contada sem balões com diálogos, a história mostrava o conflito eterno entre os dois personagens, num interminável jogo de espionagem e sabotagem, com resultados cômicos Foto: Divulgação

As razões são muitas para a baixa na popularidade. Desde a crise de vendagens das revistas em geral, até a dificuldade do corpo editorial da Mad de se adaptar à internet e ao senso de humor das novas gerações. O resultado, porém, é bastante claro: pela primeira vez em mais de seis décadas, não haverá mais quadrinhos novos da revista mais escrachada do planeta.

SUCESSO NO BRASIL

Painel da Mad na San Diego Comic Con, em 2017. Foto: Kevin Sullivan | MediaNews Group / via Getty Images
Painel da Mad na San Diego Comic Con, em 2017. Foto: Kevin Sullivan | MediaNews Group / via Getty Images

Por aqui, a história da Mad começou em 1974. Lançada pela editora Vecchi, a revista passaria por diversas casas, entre idas e vindas, até que cessasse de vez suas atividades em 2016. A última capa tirava sarro das então iminentes Olimpíadas do Rio de Janeiro.

Em boa parte das quatro décadas em que esteve em circulação no Brasil, a Mad contou com a participação de Ota, fosse como cartunista ou editor, que relatou a história da filial tupiniquim da revista: “Outras editoras já haviam tido o direito dela na mão, mas achavam que não ia pegar por aqui. Consideravam um humor muito americano. Mas a Vecchi tentou, e foi um sucesso”. No auge, a tiragem chegou a alcançar os 200 mil exemplares por edição, até se estabilizar em 150 mil.

A revista durou até o começo dos anos 80, quando a editora foi à falência. Não demorou muito, porém, para que a Record assumisse a publicação e relançasse a Mad no Brasil, em 1984. E o sucesso voltou, mantendo o mesmo patamar até o final dos anos 90, quando a revista despencou em vendas e chegou a rodar com apenas 8 mil exemplares.

“Outras coisas apareceram, jogos e VHS, por exemplo. Além disso, as famílias foram ficando menores, e o leitor da faixa-etária da Mad parou de ter interesse na revista”, explicou Ota, que hoje faz quadrinhos autorais, inclusive de sessões clássicas da revista como o “Relatório Ota”. Na virada do milênio, a Record também abriu mão da revista, que ainda viria a ser editada pela Mythos e pela Panini, onde ficaria até seu fim.

A Mad verde e amarela, porém, não era apenas uma cópia da revista americana. Por aqui, quase metade do conteúdo impresso era produzido por cartunistas locais, boa parte das vezes brincando com referências culturais e costumes bem brasileiros.

“A gente precisava, porque tinha filmes e séries que não passavam por aqui. E nós tínhamos novelas, por exemplo. Então a gente zoava com o presidente da vez e fenômenos e celebridades locais. Até porque o material americano não era suficiente, já que lá a revista só era publicada oito vezes por ano”, contou Ota.

A influência da Mad no Brasil não foi pouca, marcando uma geração de leitores e futuros cartunistas. Como destaca Dorinho Bastos, a revista é parte da tradição do humor em quadrinhos brasileiro, assim como Pasquim, Casseta Popular e Planeta Diário . Para o professor da USP, os dois últimos sendo inclusive influenciados pela própria Mad. Não surpreende, portanto, que os humoristas do Casseta & Planeta tenham prestado uma homenagem ao fim da revista em uma rede social, dizendo: “A Mad foi e sempre será um ícone do humor ácido e politicamente incorreto, revelando inúmeros cartunistas, redatores, humoristas”.

ELENCO ESTELAR

Boa parte do sucesso da Mad está associado, claro, a sua postura iconoclasta e contestadora. Mas não fazia mal à vendagem o fato de que a revista contou com alguns dos mais importantes cartunistas do século passado em suas páginas. Relembre cinco desses artistas que marcaram época:

  • Al Jaffee — Uma lenda viva, Al Jaffee contribuiu com a Mad por 64 de seus 98 anos de vida. Indissociável da história da revista, o cartunista fez milhares de colaborações na publicação. Dentre todas elas, porém, a mais famosa é provavelmente a secção que comandava, a “Dobradinha Mad ”.
  • Don Martin — Conhecido como o “artista mais louco da Mad ”, Don Martin tinha um estilo marcante e uma paixão por onomatopeias.
  • Sergio Aragonés - O espanhol Aragonés, chamado de o “cartunista mais rápido do mundo” é uma máquina de criatividade e desenho. Em uma estimativa de 2002, ele teria feito mais de 12 mil colaborações para a Mad. O certo e que Aragonés criou uma série de personagens marcantes, como “Groo, o Errante”.
  • Antonio Prohías - Outro falante do castelhano, o cubano Prohías trabalhou por décadas na revista. Mas, sem dúvida, é mais famoso por ter criado a tira "Spy vs Spy". Nela, dois espiões disputam uma eterna batalha de sabotagem mútua, sempre com resultados humorísticos.
  • Mort Drucker - Outro bastião da Mad , Drucker tem um estilo mais realista que os demais citados. Isso não o impediu de se tornar uma lenda com suas caricaturas e sátiras de personalidades da televisão e cinema.