Por Guilherme Balza, GloboNews


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O nome Rogério Antonio Ventura preenche uma das 49.608 células que compõem a planilha da Prevent Senior com dados de um estudo para testar a eficácia da hidroxicloroquina associada à azitromicina. No compilado, ele era um desconhecido, apenas um número. O paciente “192” em uma lista com 636 nomes e um amontado de informações.

Rogério Ventura é um dos nove pacientes que morreram no experimento, segundo documentos obtidos pela GloboNews, mas a operadora ocultou sete óbitos. O estudo está sendo investigado por várias autoridades, como Ministério Público Federal, a CPI da Covid e o Conselho Federal de Medicina.

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Ventura foi internado com "mal estar" e não recebeu diagnóstico de Covid (leia mais abaixo).

Ele era um sapateiro português que nasceu em Vila Nova de Foz Coa, às margens do rio Douro, e imigrou ao Brasil nos anos 1950. Comprou um lote na Parada 15 de Novembro, bairro da periferia da Zona Leste de São Paulo, e ali se estabeleceu. No terreno, construiu, com as próprias mãos, algumas casas conjugadas que até hoje servem de abrigo para filhos, netos e bisnetos. Uma família unida e grande que não se conforma com a maneira como o patriarca partiu.

Ventura morreu em 25 de abril de 2020, aos 83 anos, de forma repentina. Rogério participou do estudo da cloroquina, mas ele e os familiares jamais souberam disso. Só tomaram conhecimento depois que a reportagem da GloboNews, que teve acesso à planilha da Prevent, lhes informou.

O prontuário do paciente confirma que ele foi incluído na pesquisa da cloroquina e indica também que a operadora cometeu uma série de irregularidades.

Rogério Antonio Ventura, de 83 anos, ao lado do neto, o radialista Rafael Ventura. — Foto: Acervo pessoal

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Paciente cardíaco

Rogério tinha problemas cardíacos, era hipertenso e apresentou quadro de arritmia enquanto foi atendido pela Prevent Senior, segundo as informações que a própria operadora incluiu no prontuário do paciente. Ele também fazia uso regular de várias medicações. Por causa desses fatores, não era um paciente indicado para receber a cloroquina pelos riscos comprovados que o uso remédio pode provocar complicações no coração.

A Prevent Senior, no entanto, prescreveu a medicação duas vezes a ele, num período de um mês, uma delas sem que a família ou o próprio Rogério fossem avisados, segundo o relato dos familiares.

Em um mês, ele foi hospitalizado ao menos três vezes na unidade Tatuapé do Hospital Sancta Maggiore, que pertence à Prevent Senior. Apesar da inclusão no experimento para testar a cloroquina, Rogério não foi submetido a um teste para saber se de fato ele estava com Covid, conforme mostra o prontuário.

Ainda segundo o prontuário do paciente e a planilha da Prevent Senior, Rogério não passou por eletrocardiograma, que é uma exigência estabelecida no próprio protocolo da Prevent quando há prescrição de cloroquina.

A família diz que a Prevent nunca apresentou a ele ou aos familiares o termo de consentimento para o uso da medicação e participação do estudo. A assinatura do termo é uma exigência legal para participação em pesquisas e é uma regra do protocolo da própria operadora.

Em nota, a Prevent Senior disse que "o paciente citado deu anuência ao atendimento médico prestado como todos as demais pessoas acolhidas" e que "os médicos da empresa sempre tiveram total autonomia para prescrever os tratamentos que julguem mais eficazes.

"O paciente não morreu de Covid nem de efeitos colaterais medicamentosos, mas de complicações decorrentes de um enfisema pulmonar preexistente. A Prevent Senior não fez experiência científica, mas uma compilação de dados de atendimento de pacientes atendidos entre 26 de março e 4 de abril de 2020. Não houve fraude nesta compilação. A Prevent Senior não tem qualquer envolvimento com políticos ou “gabinetes paralelos”. Em respeito aos mais de 550 mil clientes e à sociedade, a Prevent Senior vai prestar todos os esclarecimentos sobre calúnias e fatos propositalmente distorcidos", diz a nota da empresa.

Suspeita de cobaia

O radialista Rafael Ventura, neto de Rogério, diz que o avô passou mal no final de março e foi levado à unidade Tatuapé do Hospital Sancta Maggiore.

As informações que estão no prontuário mostram que no dia 27 de março ele recebeu hidroxicloroquina e azitromicina pela primeira vez. Durante toda a internação, ele esteve acompanhado pela filha e o neto. Eles dizem que em nenhum momento os médicos e enfermeiros avisaram que Rogério tinha tomado cloroquina e azitromicina. Tampouco lhes foi informado, segundo a filha, que Rogério começaria a participar de um protocolo ou estudo novo.

O relato da família confirma uma orientação dada pelo diretor da Prevent Senior, Fernando Oikawa, em uma mensagem enviada em grupos de aplicativos de mensagem de médicos da operadora. A mensagem era uma orientação para o início do protocolo de testagem da cloroquina. Há um alerta para “não informar o paciente ou familiar sobre o protocolo ou sobre a medicação”. A mensagem foi enviada no dia 26 de março, um dia antes de Rogério ter recebido as medicações.

A reportagem esteve na casa da família do Rogério no último sábado (18), no período da tarde. Naquele momento, nem a reportagem, nem os familiares haviam obtido o prontuário do paciente. Na entrevista, Rafael afirmou que o avô só havia tomado hidroxicloroquina e azitromicina a partir do dia 18 de abril, após um motoboy levar os comprimidos até a casa da família. A prescrição foi feita por telemedicina. “Meu avo não queria tomar", afirmou.

Como o G1 revelou, em abril de 2020, contrariando a recomendação do Ministério da Saúde, a Prevent Senior orientou os médicos da rede a prescrever cloroquina em tratamento para pacientes que relatavam sintomas respiratórios e febre, mas sem confirmação de coronavírus. A recomendação era feita em consultas feitas por telemedicina.

O prontuário foi obtido pela GloboNews horas depois da entrevista e foi compartilhado com a família logo em seguida. Ao receberem o documento, o espanto. “Dia 27 ele foi levado para a unidade do Tatuapé, do Tatuapé foi transferido para a unidade de Santa Cecília, ficou uma noite e a ambulância o trouxe de volta no dia seguinte. Se ele começou o tratamento da cloroquina no dia 27, foi no hospital e foi sem a gente saber”, diz o neto. “O dia que a gente recebeu a cloroquina aqui em casa, e a gente recebeu por meio do motoboy, foi no dia 19 de abril. Não houve nenhum outro dia que ele tomou cloroquina com o nosso conhecimento.”

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Desfecho

O prontuário mostra ainda dois diagnósticos incompatíveis para o uso de cloroquina. No campo “hipótese diagnóstica”, aparece “arritmia cardíaca”. No campo “diagnóstico confirmado” aparece “hipertensão”.

Segundo a família, Rogério voltou a passar mal no dia 19 de abril. Eles telefonaram para a Prevent Senior, que o encaminhou para a telemedicina. Rafael diz que a médica que atendeu o avô prescreveu cloroquina e azitromicina. Os comprimidos chegaram duas horas depois, entregues por um motoboy. “Eles entregaram os remédios, para um senhor de 83 anos, com problemas cardíacos, como se estivessem entregando um lanche, uma pizza. Tô, toma aí.”

Ela conta que, de início, o avô não queria tomar os remédios porque sabia que não havia comprovação científica para tratar a Covid-19, mas foram os familiares que convenceram Rogério a fazer uso das medicações.

Em 20 de abril ele passou a tomar os comprimidos de 12 em 12 horas. Em 24 de abril, teve uma piora repentina. “Ele já estava irreconhecível. Ele não lembrava mais quem eu era. Ele não reconhecia mais as pessoas, já não falava mais, só balbuciava como se fosse uma criança. Fazia as necessidades no chão, onde estivesse. “

Ele foi levado ao hospital em 23 de abril e acabou morrendo dois dias depois. “A gente sentiu um pouco de descaso, nesse atendimento do dia 23, porque ele ficou duas horas e meia praticamente desfalecido assim numa cadeira de rodas, esperando uma tomografia.

Ele não tinha nem sentidos mais, não abria os olhos. Era urgente aquilo. E aí quando ele fez a tomografia foi encaminhado para um quarto. Não tentaram nem levar ele para UTI. Eles disseram ‘Deixa ele aqui, a gente vai fazendo os cuidados paliativos até que o óbito aconteça’.”

Causa da morte

Inicialmente, a Prevent Senior informou que só participariam do estudo pacientes com diagnóstico de Covid-19 confirmado, mas, para conseguir arregimentar mais pacientes em menos tempo, a operadora afrouxou as exigências. Bastaria se enquadrar em algum sintoma de Covid para que o paciente fosse incluído na pesquisa. Ou seja, no estudo estavam pacientes com diagnóstico suspeito ou confirmado da doença.

No entanto, na declaração de óbito de Rogério a operadora não menciona que se tratava de um caso suspeito de Covid. Aparecem, entre as causas da morte, “insuficiência respiratória aguda, pneumotórax espontâneo, doença obstrutiva pulmonar crônica, cuidados paliativos, senilidade.”

Como não foi feito o teste de Covid, é impossível afirmar se Rogério estava ou não com a doença. O sepultamento, no Cemitério da Saudade, foi em caixão aberto, expondo familiares ao risco de contaminação.

O neto descreve o avô como seu melhor amigo. Um homem inquieto, inventivo, teimoso, autônomo e altruísta, que não abria mão do vinho do porto e do churrasco em família. Rafael lamenta que o avô não tenha participado de seu casamento, três meses depois da morte. “Ele sempre falava. ‘Ó, pá, para de enrolar sua noiva. Casa logo, eu quero meus bisnetos’. Pensei muito nele na hora da cerimônia. Eu usei um cachecol de Portugal para homenageá-lo. De algum jeito ele estava ali.”, afirma.

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