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Política justiça

MP aponta que oito ex-funcionários de Carlos Bolsonaro tinham ocupações incompatíveis com trabalho de assessor

Registros profissionais no Ministério do Trabalho apontam que suspeitos de serem fantasmas em gabinete tinham empregos paralelos aos da Câmara Municipal, prática proibida no regimento
Vereador Carlos Bolsonaro: MP aponta que oito ex-funcionários dele tinham ocupações incompatíveis com trabalho de assessor Foto: Jorge Hely / FramePhoto / Folhapress
Vereador Carlos Bolsonaro: MP aponta que oito ex-funcionários dele tinham ocupações incompatíveis com trabalho de assessor Foto: Jorge Hely / FramePhoto / Folhapress

RIO — Oito ex-funcionários do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos) mantiveram, no período em que estiveram nomeados no gabinete, ocupações consideradas incompatíveis com o trabalho de assessor na Câmara de Vereadores. A conclusão do Ministério Público do Rio (MP-RJ) foi apresentada à 1ª Vara Criminal Especializada do Rio na investigação que apura a existência de funcionários fantasmas e se houve a prática de “rachadinha” no gabinete do filho do presidente Jair Bolsonaro entre os anos de 2001 e 2019. Entre os ex-funcionários do vereador que tinham outra ocupação, estão parentes de Ana Cristina Valle, ex-mulher de Jair Bolsonaro e também investigada pelo MP-RJ.

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O MP mapeou registros no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) do Ministério do Trabalho e descobriu que parte dos funcionários tiveram vínculos empregatícios formais enquanto estavam nomeados como assessores parlamentares, o que contraria o regimento da Câmara Municipal. Para o MP, há indícios de que “diversos assessores (...) não cumpriam o regular expediente na casa, podendo assim ser considerados ‘funcionários fantasmas’”, e com a possibilidade de que “a remuneração de seus cargos fosse desviada pelo agente público”.

Ao identificar assessores que mantinham outras profissões, o MP afirma que “não seria aceitável que funcionários ‘fantasmas’ exercessem outras atividades remuneradas em período incompatível com a jornada pública de trabalho” na Câmara.

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A defesa de Carlos Bolsonaro disse que o procedimento corre sob sigilo e, portanto, não vai "comentar ou passar qualquer informação" sobre a investigação. Procurada para comentar os vínculos empregatícios de seus familiares enquanto eram assessores de Carlos Bolsonaro, de quem foi chefe de gabinete, Ana Cristina Siqueira Valle informou, por meio de sua defesa, que também não vai se manifestar.

Jornada dupla em farmácias

Rodrigo de Carvalho Góes, que ficou no gabinete junto a outros quatro parentes , foi nomeado como funcionário de Carlos entre janeiro de 2001 e junho de 2008. O MP identificou no Caged que ele trabalhou como técnico em laboratório de farmácia em um hospital na Zona Oeste do Rio, entre maio e agosto de 2006, e como farmacêutico em duas drogarias entre novembro de 2006 e outubro de 2011. Neste intervalo, por mais de um ano, Rodrigo conciliou o trabalho em ambas as farmácias enquanto supostamente exercia função parlamentar.

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Em depoimento ao MP, Edir Barbosa Góes, pai de Rodrigo, reconheceu que o filho só foi exonerado por Carlos Bolsonaro após estar exercendo outros vínculos empregatícios por cerca de um ano. Uma das drogarias em que Rodrigo trabalhou ficava no município de Itaguaí, fora do Rio. “Não se vislumbra, assim, como Rodrigo de Carvalho Góes pudesse ter disponibilidade de horário para desempenhar a carga de trabalho diário no assessoramento ao vereador”, afirmou o MP ao pedir a sua quebra de sigilo.

Parentes de Ana Cristina Valle, ex-mulher de Jair Bolsonaro acusada por ex-assessor de comandar o esquema de funcionários fantasma e rachadinha , também estão na mesma situação. André Luis Procópio Siqueira Valle e Marta da Silva Valle, respectivamente seu irmão e cunhada, tiveram empregos identificados no Caged coincidentes por alguns meses com o período em que estiveram nomeados na Câmara. André trabalhou entre outubro de 2004 e fevereiro de 2006 numa fábrica de peças de automóveis em Resende, município do Sul Fluminense onde residia, a cerca de 160 quilômetros do Rio. Nos quatro meses iniciais na fábrica, André ainda constava como funcionário de Carlos. Ele ficou nomeado como assessor do vereador entre agosto de 2001 e fevereiro de 2005, e depois retornou entre fevereiro e novembro de 2006, mês em que foi nomeado para o gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro, do qual só foi exonerado em outubro de 2007.

Marta Valle, professora que vive em Juiz de Fora (MG), a mais de 180 quilômetros da capital fluminense, teve vínculo empregatício entre agosto e setembro de 2005 com uma creche no município mineiro, período em que constava como assessora parlamentar na Câmara do Rio. Segundo o MP, Marta, que ficou nomeada por Carlos entre novembro de 2001 e março de 2009, havia trabalhado na mesma creche imediatamente antes de se tornar assessora parlamentar, e voltou a ter vínculo formal em março de 2017. Os promotores apontaram ainda que seu marido, Alexandre Siqueira Valle, irmão de Ana Cristina, mantém vínculo empregatício em Juiz de Fora desde 2003, e que a filha do casal havia acabado de completar um ano de idade quando Marta foi nomeada na Câmara do Rio.

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Em junho de 2019, reportagem da revista ÉPOCA conversou com Marta , que negou ter trabalhado no gabinete de Carlos, e disse que apenas a família de seu marido havia sido empregada pelo vereador. Marta reconheceu ter sido nomeada, mas alegou ter sido retirada do cargo “logo depois”, embora tenha constado nove anos como assessora, recebendo salário da Câmara no período. “Ao menos no período intermediário, Marta estava trabalhando em uma escola infantil em Juiz de Fora, ao mesmo tempo em que se encontrava nomeada para o gabinete do vereador”, reforçou o MP ao justificar a necessidade de quebra de sigilo telefônico de Marta, para apurar se a funcionária de Carlos comparecia ao trabalho na Câmara.

Embora André Luis e Marta Valle informassem ao cadastro da Receita Federal que moravam fora do Rio, ambos registraram na Câmara Municipal que viviam em um imóvel na Barra da Tijuca, Zona Oeste da capital fluminense. O imóvel em questão, como mostrou o jornal “Folha de S. Paulo”, estava em nome de Ana Cristina e do então deputado federal Jair Bolsonaro, que tinham união estável à época. Também deram o imóvel na Barra como endereço outros dois funcionários de Carlos Bolsonaro que moravam fora do Rio enquanto estiveram nomeados: Andrea Siqueira Valle, irmã de Ana Cristina, e Gilmar Marques, com quem Andrea teve um filho.

Em 2019, O GLOBO revelou que Andrea, que trabalhou em gabinetes parlamentares da família Bolsonaro entre 1998 e 2018 , morou em Juiz de Fora, Resende e Guarapari (ES) nesse período. Após um relacionamento com Gilmar Marques, Andrea se mudou e deu à luz em Resende, enquanto o parceiro seguiu vivendo no interior de Minas. Ele constou como funcionário de Carlos Bolsonaro entre 2001 e 2008 e, ao ser questionado pelo GLOBO, disse não se lembrar de ter sido nomeado. Andrea, conhecida por participar de concursos de fisiculturismo, chegou a fazer faxina para se sustentar financeiramente, apesar de ter recebido salários de até R$ 7,3 mil como assessora. Em julho deste ano, o UOL divulgou um áudio em que Andrea relata a devolução de salários de funcionários, a chamada “rachadinha”, e cita que o então deputado Jair Bolsonaro tinha conhecimento do esquema nos gabinetes da família.

'Ia e voltava a Resende todos os dias'

Segundo o MP, também há indícios de ocupações incompatíveis em duas ex-funcionárias de Carlos que cursaram faculdade de Letras em Resende enquanto estavam nomeadas. Uma delas, Ananda de Menezes Hudson, esteve ligada ao gabinete do vereador entre março de 2009 e agosto de 2010. Ela era casada com um primo de Ana Cristina Siqueira Valle, Guilherme Siqueira Hudson, que também constava como funcionário. Em depoimento ao MP, Ananda afirmou que “ia e voltava a Resende todos os dias” para assistir às aulas, o que os investigadores classificaram como “uma implausível rotina pela qual passaria diariamente cerca de cinco horas na estrada”.

Já a ex-funcionária Monique de Carvalho Hudson, cocunhada de Ananda Hudson, cursou a mesma faculdade e, em paralelo, constou como funcionária de Carlos entre 2011 e 2014. Conforme O GLOBO revelou em 2019 , um colega de faculdade de Monique disse que ela frequentava as aulas normalmente, e que nunca soube de seu vínculo com a Câmara do Rio.

O MP também viu contradição da ex-funcionária Andrea Cristina da Cruz Martins, que permaneceu nomeada por Carlos entre 2005 e 2019. Andrea qualificou-se como “babá” em processo judicial de 2013, informação revelada pelo GLOBO , “sem referência ao cargo público que supostamente exercia à época”, como apontaram os investigadores. O GLOBO também havia mostrado em 2019 que Diva da Cruz Martins, mãe de Andrea, e que constou como funcionária de Carlos entre 2003 e 2005, disse nunca ter trabalhado na Câmara. Já em depoimento ao MP, Diva afirmou que ia à Câmara do Rio uma vez por mês para pegar panfletos a serem distribuídos em Nova Iguaçu, município da Baixada Fluminense onde vive, fora da área de atuação do vereador. Diva disse não saber se Andrea havia trabalhado no gabinete, e que “não tem muito contato” com a filha.

Quem são os assessores com ocupações conflitantes:

André Luís Procópio Siqueira Valle

André Luís Procópio Siqueira Valle Foto: Reprodução
André Luís Procópio Siqueira Valle Foto: Reprodução

Irmão de Ana Cristina Valle, o músico André Luis Procópio Siqueira Valle consta como funcionário no gabinete de Carlos Bolsonaro entre 2001 e 2006, período em que manteve vínculo empregatício com uma fábrica de peças automotivas em Resende, segundo o Caged. Foi também funcionário no gabinete de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados, em 2006 e 2007.

Marta Silva Valle

Marta Silva Valle Foto: Reprodução
Marta Silva Valle Foto: Reprodução

Cunhada de Ana Cristina, Marta constou como assessora de Carlos entre 2001 e 2009, período em que ela e o marido, com filha recém-nascida, moravam em Juiz de Fora. Foi empregada em creche no município mineiro em 2005. Em entrevista à Revista Época em 2019, disse que nunca havia atuado no gabinete. “Não fui eu, não. A família de meu marido, que é Valle, que trabalhou”. O salário bruto de Marta Valle chegou a R$ 9.600, e, somado a penduricalhos que funcionários podem receber, chegaria a R$ 17 mil. “Não trabalhei em nenhum gabinete, não. Minha família lá que trabalhou, mas eu não”, disse ela.

Rodrigo de Carvalho Góes

Rodrigo de Carvalho Góes Foto: Reprodução
Rodrigo de Carvalho Góes Foto: Reprodução

Rodrigo é farmacêutico. Ele esteve lotado no gabinete entre 1º de janeiro de 2001 e 1º de junho de 2008, quando já trabalhava há cerca de um ano em duas drogarias, uma delas em Itaguaí. O salário médio real dele era de R$ 8,8 mil em valores corrigidos e, assim como o irmão, ele recebeu cerca de R$ 557 mil.

Andrea Siqueira Valle

Andrea Siqueira Valle é fisiculturista e irmã de Ana Cristina Valle Foto: Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal
Andrea Siqueira Valle é fisiculturista e irmã de Ana Cristina Valle Foto: Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal

Ligada ao gabinete de Carlos entre 2006 e 2008, havia constado antes, desde 1998, no gabinete do então deputado Jair Bolsonaro; depois, ficou até 2018 como funcionária de Flávio. É irmã de Ana Cristina Siqueira Valle, ficou conhecida por atuar como fisiculturista e chegou a fazer faxinas para se sustentar no período em que estava nomeada.

Gilmar Marques

Gilmar Marques Foto: Reprodução
Gilmar Marques Foto: Reprodução

Companheiro de Andrea, com quem teve um filho em agosto de 2000, constou como assessor de Carlos de 2001 a 2008, mas vivia no interior de Minas, a mais de 200 km do Rio. Trabalhava como representante comercial em municípios como Juiz de Fora, Rio Pomba e Silverânia.

Ananda Priscila Mendonça de Menezes Hudson

Ananda Priscila Mendonça de Menezes Hudson Foto: Reprodução
Ananda Priscila Mendonça de Menezes Hudson Foto: Reprodução

Foi ligada ao gabinete de Carlos entre março de 2009 e agosto de 2010, período em que cursava faculdade de Letras em Resende, no Sul Fluminense. Alegou ao MP que ia e voltava todos os dias para o Rio, trajeto que exigiria cerca de cinco horas de carro. Casada com Guilherme de Siqueira Hudson, primo de Ana Cristina.

Monique de Carvalho Moreira Hudson

Monique de Carvalho Moreira Hudson Foto: Reprodução
Monique de Carvalho Moreira Hudson Foto: Reprodução

Funcionária do vereador entre agosto de 2010 e dezembro de 2014, passou a maior parte deste período também cursando faculdade em Resende. Segundo um colega de faculdade, era uma aluna aplicada, frequentava as aulas normalmente e nunca relatou ter um emprego como assessora parlamentar no Rio. Também é casada com um primo de Ana Cristina, André Luiz Hudson.

Andrea Cristina da Cruz Martins

Constou como assessora parlamentar por 14 anos, entre 2005 e 2019, mas apresentou-se como “babá” em um processo judicial de 2013.