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'É esta a ira de Deus?': Apocalipse vira tema central em lançamentos da nova ficção brasileira

Desastres ambientais, epidemias e autoritarismo permeiam romances recentes de autores como Ana Paula Maia, Joca Terron, Paulliny Tort, Bernardo Carvalho, Natalia Borges Polesso, Daniel Galera, Paulo Scott e Rafael Sica
Nuvem de poeira atinge interior paulista Foto: Heloísa Casonato/TV TEM / Agência O Globo
Nuvem de poeira atinge interior paulista Foto: Heloísa Casonato/TV TEM / Agência O Globo

Não são apenas as referências bíblicas frequentes que conferem uma certa qualidade profética à obra de Ana Paula Maia . Em 2013, enquanto boa parte da literatura brasileira parecia mais preocupada com dilemas existenciais da classe média urbana, seu romance “De gados e homens” já apresentava os primeiros sinais do apocalipse. Os animais do matadouro Touro do Milo começam a se comportar de modo estranho. As vacas cometem suicídio. Os sinais do fim do mundo continuaram nos romances seguintes de Maia, como “Assim na terra como embaixo da terra”, de 2017, e “Enterre seus mortos” , de 2018, quando as abelhas desaparecem e os personagens buscam respostas olhando para um céu vazio. No novo romance de Maia, “De cada quinhentos uma alma”, o apocalipse, enfim, chegou. “É esta a ira de Deus?”, pergunta um personagem, tentando se proteger de uma nuvem de gafanhotos de proporções bíblicas.

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Embora se destaque pelo diálogo com o apocalipse original (o da Bíblia), “De cada quinhentas uma alma” não é o único romance brasileiro recente que se atreveu a descrever o fim do mundo. O ano de 2021 tem se mostrado pródigo em distopias que imaginam um futuro assombrado por regimes autoritários, epidemias devastadoras e catástrofes ambientais — ou seja, assustadoramente parecido com o presente. Não faltam exemplos fora da ficção: nuvens de poeira em cidades de São Paulo, incêndios de grandes proporções nos EUA, inundações na China. E até ensaio de apagão digital, como o desta segunda-feira (4), mas isso já é outra história.

— O fim do mundo já fazia parte do meu projeto literário, mas nunca havia escrito algo tão próximo da realidade. Escrever era muito angustiante, mas a realidade era ainda pior — diz Maia ao GLOBO.

Série de colpasos

Em “De cada quinhentos uma alma” uma doença misteriosa começa a matar com tamanha voracidade que os corpos se acumulam à espera de um enterro. Também integram a lista apocalíptica os romances “O último gozo do mundo”, de Bernardo Carvalho , “O riso dos ratos”, de Joca Reiners Terron , e “A extinção das abelhas”, de Natalia Borges Polesso , os contos de “O deus das avencas”, de Daniel Galera , e a graphic novel “Meu mundo versus Marta”, de Paulo Scott e Rafael Sica. O apocalipse surge também de relance em “Erva brava”, de Paulliny Tort, que acaba de chegar às livrarias. Num dos contos, a cidadezinha de Buriti Pequeno acaba submersa após um dilúvio.

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Natalia Borges Polesso se espantou que “A extinção das abelhas”, embora estivesse praticamente pronto no início de 2020 e se passe no futuro, pareça espelhar o presente: os preços não param de subir, a população de rua se multiplica, milícias tomam as cidades, a convivência entre quem pensa diferente se torna impossível. A comunidade internacional inventa até um “colapsômetro”, que mede diversos índices ao redor do mundo e determina sanções econômicas e lockdowns em regiões onde limites forem se ultrapassados.

— A ideia era trabalhar uma série de colapsos para as pessoas entenderem o que é o fim do mundo. Afinal, o que é o fim do mundo senão dar conta do fim do mundo? — diz Borges Polesso, que revisitou o livro para incluir a pandemia. — O apocalipse se tornou uma obsessão literária a partir de 2016, quando começou esta distopia que vivemos no Brasil. Passei a escrever sobre preocupações políticas e ecológicas recentes e sobre como tanto colapso estraga até nossa vontade de viver.

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De fato, Regina, a protagonista de “A extinção das abelhas”, não tem muita vontade de viver. Quando suas vizinhas, o mais próximo que ela tem de uma família, anunciam que estão de mudança para um condomínio para fugir da violência, ela começa a se exibir para desconhecidos na internet em troca de dinheiro. Não é a primeira vez que Polesso escreve sobre o fim do mundo. No ano passado, lançou “Corpos secos”, um apocalipse zumbi à brasileira escrito em parceria com Luisa Geisler , Marcelo Ferroni e Samir Machado de Machado.

Romances explicitamente apocalípticos começaram a chegar às livrarias com mais frequências à medida que a situação política, social e econômica do país se agravou. Em 2018, Ignácio de Loyola Brandão imaginou um Brasil subjugado por epidemias e por uma espécie de polícia dos costumes, em “Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela”. Marcia Tiburi retratou uma São Paulo sem água mas ainda presa a traumas históricos em “Sob os meus pés, meu corpo inteiro”.

Além da imaginação

Em 2019, Joca Reiners Terron destruiu o mundo em “A morte e o meteoro”, que descreve um futuro próximo no qual a Amazônia foi reduzida a um punhado de árvores e as reservas indígenas foram extintas. Em “O riso dos ratos”, Terron voltou a conceber um futuro distópico, desta vez numa metrópole sem nome, apinhada de mendigos, onde até as farmácias são controladas por milícias e um pai só pensa em vingar a violência inominável sofrida por sua filha.

— Essas histórias apocalípticas refletem uma doença da nossa imaginação, que, diante dos dilemas do presente, não consegue vislumbrar o futuro pela via utópica — diz Terron. — Neste momento, a literatura está preocupada em mostrar as tragédias do passado, do presente e até do futuro. É a matéria-prima que ela tem. O papel da literatura é expor, enfiar o dedo na ferida agora. As outras ciências estão mais preparadas para tratar do futuro. Nós devemos retratar o apocalipse. Enquanto é tempo.

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No início de 2020, Carola Saavedra trabalhava num romance sobre como o mundo já acabou diversas vezes, para diferentes povos ao longo da História. Já tinha até concluído uma novela intitulada “Dez perguntas para o fim do mundo”, que seria parte do romance. Quando o novo coronavírus começou a se espalhar e a matar, ela desistiu de escrever sobre o apocalipse. Vivê-lo já parecia o suficiente. Numa espécie de ritual, queimou o manuscrito.

Saavedra começou a se perguntar o que pode a literatura em meio ao apocalipse. Suas tentativas de resposta foram compiladas no recém-lançado “O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim”. No texto que abre o livro, “A escrita do fim do mundo”, ela sugere que o “Antropoceno”, designação da atual era geológica, é caraterizado pela “capacidade humana de destruir o planeta e tudo o que há nele” e não passa de “um nome científico para o que antigamente chamávamos de fim do mundo”.

Reconstrução

Ela suspeita que também esteja chegando ao fim o mundo onde vigorou o que chama de “razão cartesiana ocidental colonialista binária”. E é aí que entra a literatura.

— Diante da realidade em colapso, a literatura pode contar novas histórias, que nunca foram contadas, e, assim, trazer à tona um saber inconsciente, ancestral, coletivo, que nos ajude a pensar em novos caminhos e a construir um novo mundo — afirma Saavedra.

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A crítica literária Regina Dalcastagnè, professora da Universidade de Brasília (UnB) lê a ficção apocalíptica brasileira como uma “resposta angustiada” ao tempo presente. Ela traça paralelos entre a produção contemporânea e obras publicadas nos anos 1970, quando romances como “Zero”, de Ignácio de Loyola Brandão, “Reflexos do baile”, de Antonio Callado , e “A festa”, de Ivan Angelo, tentaram enfrentar uma situação política que, à época, parecia sem saída: a ditadura militar. Naqueles anos sombrios, a dificuldade de se imaginar um futuro era tamanha que muitos romances sequer tinham um final.

Segundo Dalcastagnè, o principal recurso literário usado nos romances escritos sob a ditadura era a “fragmentação”, enquanto hoje é o “excesso”: a literatura atual leva ao extremo os sinais apocalípticos que se repetem diuturnamente no noticiário, permitindo que o leitor ao mesmo tempo reconheça e se espante com o que lê.

Espaço de libertação

Dalcastagnè lembra que, sozinha, a literatura não consegue frear o avanço do apocalipse.

— A literatura pode ser um espaço de libertação, mas é importante que a luta se dê também fora do livro — diz. — Os autores desses romances apocalípticos estão nas redes sociais e se juntam para falar de sua preocupação com a situação do país. Isso é muito importante, porque precisamos encontrar espaços de resistência e sonho. Precisamos encontrar soluções, porque o mundo não vai acabar — afirma.