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Cultura

'Quero ajudar a matar a morte', diz o historiador Boris Fausto, sobre o voto, aos 91 anos, na eleição de 2022

Um dos mais destacados intelectuais brasileiros lança 'Vida, morte e outros detalhes', livro de memórias escrito sob a dor da perda do irmão, o filósofo Ruy Fausto, para a Covid-19, e da 'negligência do governo em enfrentar a pandemia'
O historiador, cientista político e escritor Boris Fausto em sua casa, em São Paulo Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
O historiador, cientista político e escritor Boris Fausto em sua casa, em São Paulo Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

SÃO PAULO — Resultado de luto íntimo — a morte do irmão, o filósofo Ruy Fausto , em maio de 2020, pela Covid-19 — e público — a tragédia nacional da pandemia — “Vida, morte e outros detalhes” é um pequeno grande livro de memórias. Nele, um dos mais importantes intelectuais públicos do país, o historiador e cientista político Boris Fausto , volta à infância na São Paulo dos anos 1930, revisita querelas e comunhões com os irmãos mais novos (o caçula, o médico Nelson, morreu em 2012) e reflete sobre a (in)finitude humana e avanços e atrasos da nossa sociedade.

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Há quatro meses, o acadêmico teve um AVC e, na conversa com O GLOBO, fez dois pedidos: um, de desculpas, por qualquer dificuldade de expressão (“Ainda estou procurando as palavras. Meus parâmetros são rígidos e gostava de minha voz, que agora felizmente está voltando”). O outro, de tratamento (“Ser nonagenário já traz senioridade implícita. O “senhor” poderia me chamar de você?”).

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A voz já firme e o uso exato da língua são os mesmos que conquistaram leitores em “O brilho do bronze”, escrito há dez anos, também fruto de circunstância penosa, a morte de sua mulher, Cynira. “Vida(...)” pode até ser lido como uma continuação do tomo anterior, também calcado em histórias curtas e na observação da vida cotidiana, mas o novo livro passeia pelos bosques da ficção e trata de pesadelo impensável: a pandemia, “essa convivência diária com a morte banalizada”. Algo que o autor espera enterrar nas eleições do ano que vem, “quando ajudarei com meu voto a matar a necropolítica”.

Nos últimos anos, você e Ruy praticaram um jogo de perguntas e respostas por e-mail, inspiração para o livro. Com fragmentos de memória, foram montando um quebra-cabeças à distância. Foi uma maneira de seguirem juntos?

Sim. A memória da infância permeou nossa vida, inclusive nas instâncias em que estive afastado do Ruy, não por razões afetivas, mas por contingências políticas: ele se aproximou, numa postura não excludente de críticas, do PT, eu projetei no PSDB de Fernando Henrique, Covas e Montoro minhas esperanças de um Brasil melhor. Nossa infância então se tornou um ponto de tranquilidade, para onde íamos para seguir dialogando. Ele vivia em Paris quando propus a troca de e-mails, topou, e foi a minha glória ( risos ). Não iríamos mais concorrer, como, de certa forma, fizemos pela vida afora. Passamos a aplaudir um ao outro por cada fato, sentimento, peça que desenterrávamos do quebra-cabeças do passado. Até que, um dia, ele não respondeu a uma mensagem. Foi uma morte súbita, vítima da pandemia.

O historiador, cientista político e escritor Boris Fausto em sua casa, em São Paulo Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
O historiador, cientista político e escritor Boris Fausto em sua casa, em São Paulo Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

A reaproximação também se deu justamente por conta das críticas ao governo de Jair Bolsonaro, não?

A repulsão a este governo nos uniu mais. Nossas diferenças políticas eram de ênfase. E, inclusive por questões psicológicas e de afirmação, as magnificávamos. Com o bolsonarismo, nós, democratas, criamos juízo ( risos ). O que se vê é uma das maiores tragédias da História brasileira, com a pandemia ocorrendo no mesmo tempo histórico da ascensão de uma direita tão extremada quanto ignorante. Ficamos, Ruy e eu, com a sensação de desamparo total. Só a defesa da democracia pode vencer essa vergonha que enxovalha o país. Um governante razoável teria tomado medidas para proteger seu povo, tido coragem para enfrentar a morte.

E o senhor termina o livro de forma onírica, justamente assassinando a própria morte...

Sim. É isso: gostaria, de forma muito consciente, de ajudar a matar a morte, a necropolítica, em 2 de outubro de 2022.

Aos 60, você instituiu a meta de, a cada aniversário, viver cinco anos mais . Agora, aos 90, diz estar “menos ambicioso”: quer testemunhar a derrota de Bolsonaro por um candidato de oposição. Mas que oposição é essa?

O momento histórico pede a união nacional contra o bolsonarismo, a formação de uma frente democrática. Mas vaidades pessoais, infelizmente, as impedirão. Não vejo hoje a figura de um tertius, que consiga amalgamar todos os setores democráticos. Eu não sou petista, mas o nome que surge hoje, realisticamente, é o do Lula. O PT se manchou eticamente, mas de modo algum concordo com o maniqueísmo fácil que iguala o lulismo ao bolsonarismo. A equiparação é equivocada.

Em “Vida(...)” você cita o livro mais recente do cientista político Jairo Nicolau, “O Brasil dobrou à direita”, e provoca: “quando é que o Jairo poderá tirar a crase e aproveitar o título de novo?”

Sim ( risos ). Não quero dar uma imagem rósea de como vejo o Brasil, sei que temos grandes carências, mas creio na superação delas, que poderemos sim dobrar a direita. Uma carência óbvia é a falta de lideranças políticas. Foi o tecido esgarçado da ausência de programas nacionais que nos trouxe até aqui. O PT foi contaminado, e muito, pela corrupção. E o PSDB alterou seu rumo.

O filósofo, historiador e professor Ruy Fausto, irmão de Boris, que morreu em em maio de 2020, de complicações causadas pela Covid-19 Foto: Anna Carolina Negri / Agência O Globo
O filósofo, historiador e professor Ruy Fausto, irmão de Boris, que morreu em em maio de 2020, de complicações causadas pela Covid-19 Foto: Anna Carolina Negri / Agência O Globo

Você escreve que o PSDB subsiste, mas que "o partido tornou-se uma garrafa com outro líquido, ainda que com o rótulo original"...

Sim. E não me parece que ele voltará a uma linha que considero adequada. A superação do que vivemos hoje será difícil, meu tempo de vida se esgota, mas não me tornei um pessimista casmurro, não desejo fechar possibilidades aos que chegam. Meus 90 anos são também um testemunho de que a sociedade brasileira melhorou. As mulheres, os negros, as pessoas LGBT, hoje também são protagonistas da nossa História. E o respeito a estes brasileiros é uma conquista civilizatória imensa. Fui marcado pelo preconceito, mas também pela tentativa de me livrar dele. Hoje quem quer ser democrata não pode de forma alguma considerar o negro um ser inferior, fazer piada de gays, diminuir as mulheres. Nós melhoramos muito. E é muito importante compreender que esse atraso boçal ao nosso redor, como se vê na Fundação Palmares, é, também, uma reação ao progresso que nós construímos.

Seu irmão, como o senhor pontua no livro, citando coluna de Bernardo Mello Franco no GLOBO , foi um dos primeiros intelectuais públicos a perceber a dimensão da ameaça da nova extrema direita no Brasil. Há risco de ruptura democrática?

Sim, pois setores da extrema direita, especialmente nas polícias militares, farão o que puderem para desestabilizar o processo democrático. Mas o risco está declinando, por conta da reação das instituições e da opinião pública. Historicamente, não estamos em 1964, temos uma boa chance de levar adiante o processo de aprimoramento da sociedade brasileira. E, depois do susto que tive com o AVC, em um momento em que não estava fragilizado, mas trabalhando, em plena função, desejo muito viver para votar, aos 91 anos, contra o atraso. E de assim vislumbrar a possibilidade de um país melhor.

O senhor é um dos principais estudiosos sobre o Estado Novo (1937-1945). É possível comparar o que vivemos hoje com algum outro momento histórico do país?

Nós já vivemos o horror do escravismo, e durante muito tempo. Mas, desde então, não houve período tão trágico. Eu era ainda menino quando do surgimento do fascismo no Brasil e do estabelecimento do Estado Novo varguista, que foi uma ditadura completa. Getúlio Vargas é um personagem controverso, eleito pelo voto popular em 1950, que realizou projetos de âmbito nacional. Merece respeito, o que, definitivamente, não é o caso agora. E mesmo em comparação com a ditadura militar (1964-1985), de certo modo, a decepção, a tragédia, agora, é mais complexa.