SÃO PAULO — Todo dia, a assistente administrativa paulistana Alessandra Santos fazia tudo sempre igual. A caminho do trabalho, ela botava o celular para tocar alguma música da dupla mineira de rap Hot e Oreia — o disco mais recente, “Crianças selvagens”, com samples de Caetano Veloso e Nelson Ned, entrou na lista de melhores de 2020 da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).
Desde a virada do ano, porém, não existe mais Hot e Oreia. Grávida, a ex-namorada de Mario Apocalypse do Nascimento, o Hot, relatou no Instagram comportamentos abusivos dele. A história logo se espalhou, gerando revolta entre os fãs, e Hot veio a público anunciar o fim da dupla.
A reação está diretamente ligada ao conteúdo de suas músicas, nas quais adotavam uma certa postura “desconstruída” e de respeito à mulher. Moral da história: Hot e Oreia não passaram incólumes pelo tribunal da internet e foram criticados , repudiados, xingados, boicotados. Para resumir numa palavra, cancelados.
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— As coisas que eles cantam perderam o sentido — diz Alessandra. — Tentei escutar e senti raiva. Você sabe que ele está mentindo.
Cada vez mais comum em tempos de redes sociais, a chamada cultura do cancelamento não tem o poder de arruinar apenas carreiras. Ela afeta muita gente ao redor, entre familiares, amigos, equipe, contratantes e, sobretudo, os fãs, que investem tempo e dinheiro para consumir o que os ídolos produzem. São os órfãos do cancelamento. Uma legião de desiludidos e revoltados com astros da música (como também os das bandas Brand New e Apanhador Só , para usar exemplos recentes), da literatura, do cinema, do insondável universo dos influencers .
Na pele
Imagina quando a decepção com o ídolo é tamanha a ponto de ser lembrada pelo próprio espelho? É o caso da carioca Maria Mallet, que tatuou a capa de um disco da banda americana Brand New, cancelada após o vocalista Jesse Lacey sofrer acusações de assédio sexual envolvendo menores. Ou da produtora audiovisual paulistana Bruna Santos, fã de Harry Potter desde os 6 anos e que encontrou no universo criado pela escritora J.K. Rowling valores como “respeito, empatia e amor ao próximo”.
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Tão logo completou 18 anos, ela fez uma tatuagem no braço que remete à franquia. A relação com o desenho está estremecida desde que
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, o que revoltou uma grande parcela dos fãs. Bruna chegou a perguntar no Twitter “como vou arrumar dinheiro para apagar a tatuagem enorme de Harry Potter que fiz?”.
— Ainda não sei o que vou fazer com ela. Quando olho para o desenho, sempre lembro de fundinho as porcarias que a J.K. falou, mas também tudo o que aprendi com a história — explica.
O desenhista e professor Masao Hikaru, que é um homem trans, já decidiu: não consome mais nada ligado a J.K. Rowling:
— Ela quer diminuir a existência das mulheres trans e reforça um discurso da sociedade que diminui as pessoas a um genital. Ela tem um alcance absurdo e passa para frente uma mensagem equivocada.
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A “orfandade” pode doer no bolso, como no caso do ator Luiz Pinheiro, que tem entre 65% e 70% de sua renda dependente dos trabalhos como sósia de Johnny Depp . O astro saiu de franquias milionárias depois de acusações de violência contra a ex-mulher, Amber Heard . Luiz perdeu trabalhos por conta dos problemas recentes ligados à imagem que, de certa forma, ele tenta copiar:
— Sou diretamente prejudicado. Não vou passar pano para o cara, perdi muito da admiração, mas faço o capitão Jack Sparrow há 12 anos, e pretendo continuar. Mas já ouvi questionamentos, perdi trabalhos. Pode até ter alguma reviravolta na Justiça, mas o estrago já está feito.
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Não que o cancelamento seja novidade. Em 1966, fãs dos Beatles chegaram a queimar discos da banda após John Lennon dizer que eles eram mais populares do que Jesus. Mas hoje tem a internet. E o tribunal on-line e virtual é muito mais barulhento e funciona por regras próprias. Bordões como “devolve meus plays” e “perdeu meu like” são repetidos à exaustão.
— Assim como todo movimento massivo e recente, há exageros na cultura do cancelamento, até porque não há uma base histórica para o nível de entendimento que grupos sociais antes oprimidos atingiram com a disseminação das redes sociais — analisa o publicitário Ângelo Francisconi, um dos sócios do perfil BCharts, muito popular nas redes sociais exatamente por expor e incentivar cancelamentos. — A cada ano que passa, as pessoas exigem mais dos seus “modelos de vida”, em vez de aceitarem passivamente comportamentos mais questionáveis.
Questão geracional
O cancelamento traz ainda vítimas indiretas, como empresas que apoiam a personalidade — o que ficou claro no caso da influencer de saúde Gabriela Pugliesi, que promoveu aglomerações nada saudáveis durante a pandemia e gerou um movimento de pressão a seus patrocinadores, que suspenderam os contratos.
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— São sérios os atos considerados hipócritas ou incoerentes com aquilo que o influenciador prega, ou atitudes que confrontam normas coletivas ou o bom senso consagrado socialmente — diz Fabiana Bruno, fundadora da agência SUBA, especialista em marketing de influência e que cuida da imagem de nomes como Fernanda Gentil e Márcio Garcia. — A verdade é o único caminho possível para que o influenciador tente evitar o cancelamento. Falar e sentir com autenticidade a responsabilidade pelos seus atos.
Para o psicanalista Mario Corso, autor de livros como “Adolescência em cartaz” e “Fadas no divã” (Artmed Editora) e fã do cancelado cineasta Woody Allen , o afã por cancelar alguém é um problema geracional:
— O cancelar é uma forma de você ficar bem no coro das pessoas de bem, é não aceitar a imperfeição humana. As pessoas hoje pedem para que seus ídolos sejam deuses, o que é um pedido absurdo. A idolatria é um gesto religioso, praticamente. Mas os mais velhos não cancelam, por saberem que uma vida não pode ser resumida a um erro.