Quem é Aly Muritiba, o cineasta que disputa vaga no Oscar 2022 e já foi carcereiro

Seu filme 'Deserto Particular' foi premiado em Veneza, passa na Mostra de SP e tenta indicação de filme internacional

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Antonio Saboia em cena do filme

Antonio Saboia em cena do filme 'Deserto Particular', dirigido por Aly Muritiba Divulgação

São Paulo

É fácil pensar em Aly Muritiba como um cineasta improvável. Foram poucos os momentos em sua infância e formação que apontavam para esse caminho —e os trabalhos que teve antes, de bilheteiro de metrô a agente penitenciário, tampouco sinalizavam uma inclinação à cadeira de diretor.

Mas é justamente a essa jornada inesperada, peculiar e pouco afeita à vida artística que ele atribui o fato de, hoje, ser uma figura premiada em festivais como Brasília, Gramado, Sundance e Veneza, e de ter sido escolhido pela Academia Brasileira de Cinema, na semana retrasada, para tentar uma vaga para o Brasil no próximo Oscar.

"A coisa não é tão aleatória assim", no entanto, diz ele. "Eu nunca imaginei que faria um filme na vida, mas desde criança eu leio muito, escrevo poesia, já tive uma banda. Aos 15, eu criei um cineclube na cidade onde morava", ele lembra em conversa por telefone, numa ligação que por vezes falha, limitada pela pouca estrutura do sertão paraibano, onde Muritiba grava uma série para o streaming.

Nascido em Mairi, cidadezinha no interior da Bahia com cerca de 20 mil habitantes que até hoje não tem cinema, Muritiba já era adulto quando mergulhou pela primeira vez no escurinho de uma sala para ver um filme. Agora, se tudo der certo para os brasileiros, seu último longa, "Deserto Particular", pode levar o diretor à meca do cinema mundial, Hollywood, para acompanhar a cerimônia de entrega do Oscar do ano que vem.

O baiano de 42 anos desbancou a escolha mais provável para ser o indicado brasileiro ao prêmio de melhor filme internacional, "7 Prisioneiros" —que tinha o gigante Netflix e o bem relacionado Fernando Meirelles por trás— com um filme bastante intimista, simples, mas de uma delicadeza que parece ter sensibilizado os membros da Academia Brasileira.

"Quando eu recebi a notícia, eu fiquei muito feliz, porque me considerava o azarão e, no instante seguinte, eu pensei ‘eita, e essa responsabilidade agora?’", diz ele sobre a escolha. "O grande desafio é botar o filme para os votantes do Oscar verem. Se o cara sentar para ver, eu boto muita fé nele."

Se, em fevereiro, "Deserto Particular" de fato aparecer entre os indicados ao Oscar, será o primeiro brasileiro na lista de filme internacional desde "Central do Brasil", de 1998. O longa já tem passagem por Veneza, onde ganhou um prêmio do público, e é exibido agora na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. A estreia no circuito ficou para o dia 18 de novembro.

No longa, acompanhamos um policial que deixa Curitiba em direção ao interior baiano, onde pretende encontrar uma jovem por quem se apaixonou pela internet. Ele enfrenta um processo por uso de violência num treinamento e, do outro lado do país, se vê enroscado numa trama que celebra a diversidade.

É uma história de amor que reúne opostos e que, muitas vezes, traça paralelos voluntários e acidentais com a própria trajetória de Muritiba. "Quando trabalhei na prisão, o grosso das pessoas era de matriz mais conservadora. Só que por muito tempo eu enxerguei a coisa de forma simplista, por ser graduado em história, ex-diretor de centro acadêmico da USP, mas nada é simples assim", afirma. "É preciso haver troca, conversa, diálogo, e o filme é um bom exemplo disso."

Depois de crescer em Mairi, criado por um caminhoneiro e uma dona de casa, o cineasta estudou em São Paulo e foi morar em Curitiba, cidade de sua ex-mulher. No interior baiano, trabalhou numa fabriqueta que o pai montou; na capital paulista, vendeu bilhetes no metrô; no Sul, sem encontrar emprego, decidiu prestar concurso para ser carcereiro. Passou e lá ficou por sete anos.

cena de série
O cineasta Aly Muritiba em cena da série "Nós, Documentaristas" - Divulgação

"Às vezes eu brinco com as pessoas, que ficam admiradas com a minha história, e digo que tudo isso que eu conto pode ser mentira, afinal, eu sou roteirista", ele provoca.

A prisão é um ambiente de violência e marginalidade, mas que abriu seus olhos para muita coisa e, eventualmente, o levou para os filmes. Ao saber que podia ter horas de trabalho abonadas caso estudasse, decidiu se matricular num curso de cinema, meio que por conveniência. E aí decidiu levar sua realidade para as telas por meio de uma trilogia sobre o sistema prisional, formada por "A Fábrica", semifinalista ao Oscar de curtas em 2013, "Pátio", que chegou a Cannes no mesmo ano, e "A Gente".

Em 2015, ele lançava o primeiro longa ficcional, "Para Minha Amada Morta", que teve o roteiro premiado em Sundance e arrematou, em Brasília, os troféus de direção, ator coadjuvante, atriz coadjuvante, fotografia, direção de arte e montagem. Com o empurrãozinho, largou de vez a cadeia e decidiu viver de cinema.

"A cadeia me vez exercer alguns dos predicados que eu acho importantes para um realizador de cinema —a escuta, a diplomacia, a observação. Ela me preparou para o diretor que eu sou e não me deixou ficar deslumbrado. Sei que se um dia todas as câmeras pararem, não teria problema em voltar para a cadeia."

Depois de "Para Minha Amada Morta", Muritiba dirigiu "Ferrugem", de 2018, premiado como melhor filme, roteiro e som no Festival de Gramado. Voltou a Sundance com a obra e, na sequência, embarcou nas séries televisivas, dirigindo episódios de "Carcereiros", "Irmandade" e "Irmãos Freitas". Mais recentemente, esteve à frente de "O Caso Evandro", sucesso criminal do Globoplay baseado no podcast sobre o desaparecimento de um menino no Paraná.

A série foi um fenômeno que arrebatou diferentes tipos de público, apresentando Muritiba para uma nova leva de admiradores. Mesmo sabendo da popularidade que o gênero true crime vem ganhando em diferentes mídias, o cineasta diz que a repercussão da série foi "assustadora".

"O Caso Evandro" foi finalizada em paralelo a "Deserto Particular" e a outro longa, "Jesus Kid", uma comédia que garantiu a Muritiba os prêmios de direção e roteiro, novamente em Gramado. Foi um período "muito doido", diz ele, que trabalhou num momento em que boa parte do setor estava paralisado pela pandemia, já que as cenas dessas tramas já estavam todas gravadas.

Agora, ele prepara uma série para o Amazon Prime Video, sobre a qual não pode falar muita coisa, outra produção criminal para o Globoplay, inspirada no caso dos meninos emasculados de Altamira, e dois filmes —um é uma adaptação de um livro de Daniel Galera, o outro ainda está em fase de captação de recursos.

Enquanto isso, Muritiba colhe os frutos de "Deserto Particular", um projeto especial não só pelo reconhecimento que vem ganhando, mas também por simbolizar um retorno do cineasta à sua Bahia natal e por ser fruto de um momento especial para ele, que diz estar apaixonado e, por isso, estar tentando "olhar para o mundo de uma forma muito apaixonada".

"Quando a gente olha para o mundo com olhos de beleza, de amor, a gente consegue encontrar leveza até nos lugares mais áridos, como o interior baiano", diz ele, sobre a jornada também pessoal que apresenta ao público em seu "Deserto Particular". Ele torce, agora, para que os votantes do Oscar assistam ao longa com esses mesmos olhos.

Deserto Particular

  • Quando Sessão na 45ª Mostra de Cinema de SP neste sábado (30), às 13h30, no Espaço Itaú de Cinema - Augusta. Estreia nos cinemas em 18 de novembro
  • Elenco Antonio Saboia, Pedro Fasanaro e Thomas Aquino
  • Produção Brasil/Portugal, 2021
  • Direção Aly Muritiba
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