Refém do algoritmo?

27.11.2021 - Por Guilherme Werneck

O set que preparei na última sexta para o Improfest se tornou, contra a minha vontade, um exercício sobre o silêncio.

Um silêncio meio glitch, fruto da censura dos algoritmos no YouTube. Não estou querendo tirar a minha responsabilidade. Em vez de criar algo com meu baixo e algumas bases obscuras ou feitas em casa, tive uma ideia de fazer um set de DJ que deixasse clara a minha paixão por improvisação, e que trouxesse a liberdade suprema de improvisar sobre improvisadores. Isso porque bem antes de o Paulo Hartmann me convidar para fazer esse vídeo/set para o festival, eu acompanho o Improfest com muita reverência, primeiro porque eu amo a cultura da improvisação, venha ela do jazz, do punk ou da música erudita. Depois porque este é um espaço importante para dar voz aos improvisadores brasileiros, um dos poucos espaços, diga-se. Por isso, ao ser convidado para pensar algo para o festival, eu tenha imediatamente pensado numa estratégia que abarcasse uma ideia intelectual de música, muito como as estratégias oblíquas do Brian Eno. Defini meu campo a partir de uma provocação: a ideia de choque entre a guitarra improvisada do jazz branco norte-americano e europeu em contraste com nossos batuques mais profundos, mas também tocado por uma mulher branca. Na minha cabeça, eram várias camadas de pensamento de apropriação, remix, amor, reverência e iconoclastia. Como tinha planejado uma improvisação de 20 minutos, escolhi poucas fontes para serem mixadas, loopadas, torcidas e resignificadas com efeitos, silêncios, distorções de tempo, cacofonias. Também queria contrapor um instrumento icônico mas não central na improvisação livre, a guitarra, aos tambores. Quando penso em guitarra improvisada, ninguém tem uma obra mais interessante do que o finado Derek Bailey.

Queria trazer o lado mais abstrato do guitarrista britânico, em gravações que icônicas como o Arco Duo, com o saxofonista Evan Parker, Improvisations for Cello and Guitar, com Dave Holland, mas também um disco incrível, Ballads, em que ele toca perfeitamente temas e melodias de standards para depois desconstruí-los. Se Derek Bailey era a espinha dorsal, queria trazer também outras experiências com guitarras e aí escolhi gravações de Bill Frisell, outro grande improvisador, e da jovem Mary Halvoson, que tem uma mirada muito interessante com a forma, de certa maneira similar ao Ballads, mas com composições próprias.

A esse trio de guitarristas, sem sync nem fones, eu adicionei os loops de trechos de tambor do excelente Macumbas e Catimbós, de Alessandra Leão, que passa ao largo da música improvisada, mas que traz uma ancestralidade brasileira e um registro de som de percussão único. Podia dar tudo errado ao seguir essa premissa mais intelectual, mas no calor da improvisação, tudo se encaixou e eu fiquei feliz com o resultado, mesmo sabendo que o acaso faz com que algumas partes sejam mais interessantes que outras, que haja choques indesejados, coisas que não saem perfeitas de cara, mas que são corrigidas a quente.

Uma sensação que é muito comum a improvisadores, que ouvi já de muitos músicos com quem conversei como jornalista. Ao subir o vídeo com esses 20 minutos de música, os algoritmos do YouTube barraram todas as músicas de Derek Bailey, que basicamente permeavam a quase totalidade do set. Sei que é o carreto do ponto de vista legal, mas é de uma ignorância absurda do ponto de vista artístico.Imagino que o próprio Derek Bailey, com quem tive a chance de falar uma vez, iria gostar da homenagem e de ver a sua música guiando uma aventura musical, afetiva e intelectual. Mas aí quem manda não é o artista e muito menos a voz do artista morto, mas a rede legal que dá suporte ao grande negócio comercial do streaming de vídeo, que, diga-se, só sobrevive graças ao trabalho dos outros. O veto é o correto, mas ao mesmo tempo é atroz, desalmado, vem da máquina que não percebe nuances. O oposto simétrico da ideia de improvisação. Na próximo sabado vamos tentar de novo mostrar esse trabalho, agora no Twitch (link será atualizado em breve ;)). Tomara que dê certo. Que ainda existam rincões que sejam o que meu amigo Sérgio Teixeira, com quem discotequei ao vivo na internet no começo dos anos 2000, quando nem havia YouTube ainda, chamou de World Wild West. Mas se só sobrar a corrida do outro no lugar do velho Oeste, resignado eu espero o dia em que essa pandemia arrefeça de vez e eu possa mostrar ao vivo essa homenagem e esses quatro grandes artistas e aos espíritos inquietos.

Anterior
Anterior

"Jazz is not dead, it just smells funny"

Próximo
Próximo

A encruzilhada da música experimental: o Improfest e seus formatos híbridos