Cultura

Portaria proibindo linguagem neutra em projetos da Rouanet é inconstitucional, dizem especialistas

No Twitter, o secretário Mario Frias chamou recurso de 'mera destruição ideológica da nossa língua'
André Porciúncula e Mario Frias em clube de tiro no 2º Batalhão de Polícia do Exército Foto: Reprodução
André Porciúncula e Mario Frias em clube de tiro no 2º Batalhão de Polícia do Exército Foto: Reprodução

Publicada no Diário Oficial da União nesta quinta-feira (28), a portaria da Secretaria Especial da Cultura proibindo a utilização de “linguagem neutra” em projetos financiados pela Lei Rouanet não teria efeitos práticos, segundo especialistas ouvidos pelo GLOBO. A medida também seria inconstitucional, já que fere princípios estabelecidos por lei.

A decisão, já em vigor, indica que, em iniciativas contempladas pela Lei de Incentivo à Cultura, “fica vedado o uso e/ou utilização, direta ou indiretamente, além da apologia, do que se convencionou chamar de linguagem neutra”.

— Legalmente, uma portaria não tem esse poder. Portarias devem estabelecer regras procedimentais, como definição de prazos e formulários. Portanto, a decisão não tem força — ressalta Cristiane Olivieri, advogada especializada no mercado de cultura. — O texto de um projeto deve ser claro quanto aos seus objetivos, metas e orçamento. Se ele usa a linguagem no feminino, no masculino, no neutro, isso é irrelevante, desde que seja claro e atenda aos pré-requisitos da legislação.

Secretário especial de Cultura, Mario Frias justificou a medida alegando, no Twitter, que linguagem neutra “é mera destruição ideológica da nossa língua”. O secretário de Fomento à Cultura, André Porciuncula, que assinou o documento, diz que “o uso de signos ininteligíveis, cujo objeto é mera bandeira ideológica, impede a fruição da cultura e seus produtos, pois interrompe o processo de comunicação da língua”.

Tema de disputa política instaurada por bolsonaristas, a linguagem neutra já mobilizou ações parlamentares em ao menos 14 estados e também na Câmara Federal — as propostas tinham, até então, o intuito de impedir o uso desse recurso em escolas.

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Em julho, Mario Frias criticou em suas redes sociais o uso da palavra “todes” pelo perfil oficial do Museu da Língua Portuguesa, em postagem que anunciava sua reabertura, após obras para restaurar o prédio, atingido por um incêndio em 2015. "O Governo Federal investiu 56 milhões de reais nas obras do Museu da Língua Portuguesa para preservarmos o nosso patrimônio cultural, que depende da preservação da nossa língua. Não aceitarei que esse investimento sirva para que agentes públicos brinquem de revolução", escreveu Frias no dia 26 de julho, cinco dias antes da reinauguração. O museu tem sua administração ligada à Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo

— É mais um delírio autoritário e completamente ilegal do governo Bolsonaro — diz Sérgio Sá Leitão, secretário de Cultura do Estado de São Paulo, que não descarta que a portaria seja uma retaliação ao episódio. — No planeta Bolsonaro tudo é possível. Inclusive a edição de uma portaria delirante como reação a um post no Twitter feito por um museu.

Especialistas apontam que a nova medida, que agora atinge a Lei Rouanet, pode se configurar como limitação à liberdade de expressão. Em junho deste ano, o Plano Nacional de Cultura teve sua vigência prorrogada por mais 12 anos. As diretrizes do documento prezam justamente pela promoção de “políticas, programas e ações voltados às mulheres, relações de gênero e LGBT, com fomento e gestão transversais e compartilhados”.

— Cabe destacar que os objetivos do Plano Nacional de Cultura pretendem, sobretudo, promover o fortalecimento institucional e a definição de políticas públicas. É, sem dúvida um aspecto norteador para as políticas, incluindo o fomento e o financiamento à cultura. Ou seja, essas diretrizes também norteiam a Lei Rouanet — frisa Adriana Donato, doutora em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). ( Colaborou Nelson Gobbi )