A pesquisadora da Coppe-UFRJ Joana Portugal (Foto: Divulgação/Coppe)

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“Se todos fossem como o Brasil, mundo aqueceria mais 4 graus”

Brasileira coautora de relatório da ONU que aponta que Brasil foi único país do G20 a retroceder em meta climática diz que seria melhor manter a NDC antiga

27.10.2021 - Atualizado 11.03.2024 às 08:30 |

FELIPE WERNECK
DO OC

“Não tem como não dar errado. Vai dar errado.” O bordão do podcast político-satírico Medo e Delírio em Brasília bem poderia ser a epígrafe do relatório lançado nesta semana pelo Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) sobre a distância entre a ambição das metas de emissões dos países e o necessário para evitar uma catástrofe climática.

O documento mostra que, se todos os compromissos, promessas, leis e anúncios feitos por governos do mundo inteiro forem implementados, o corte de emissões até 2030 será de 7,5%. Para que a humanidade tenha uma chance de pelo menos 66% de limitar o aquecimento da Terra em 1,5oC neste século, como determina o Acordo de Paris, a queda precisaria ser de 55%, no mínimo.

As novas NDCs, as metas climáticas atualizadas pelos países desde o ano passado, melhoram a situação, mas só um pouco: juntas, elas retiram 2,9 bilhões de toneladas da conta de carbono da humanidade em 2030. Se contarmos promessas feitas recentemente (mas ainda não formalizadas) de China, Japão e Coreia do Sul, a redução aumenta para 4 bilhões de toneladas. Parece muito? Não é: o “buraco” a fechar nos próximos oito anos a fim de tirar o planeta do trilho da catástrofe é de 28 bilhões de toneladas.

É por isso que, neste ano, o Pnuma nem disfarçou a frustração e batizou seu relatório anual sobre a lacuna de emissões (o Emissions Gap Report) com o título da música de Glenn Frey dos anos 1980: The heat is on: a world of climate promises not yet delivered (“O aquecedor está ligado: Um mundo de promessas climáticas ainda não cumpridas”).

O relatório é particularmente impiedoso com os países do G20, que respondem por 80% das emissões de gases de efeito estufa do planeta. “Como grupo, os membros do G20 não estão no rumo de atingir nem suas NDCs originais, nem suas novas promessas para 2030”, diz o relatório.

Um membro do grupo em especial mereceu uma reprimenda: o Brasil. Segundo o relatório, apenas Brasil e México submeteram novas NDCs no ano passado que são menos ambiciosas que as originais. A do México tem um aumento de emissões considerado “marginal” e foi suspensa na Justiça neste mês; a do Brasil tem uma “pedalada” de 400 milhões de toneladas – o órgão da ONU a calculou em cerca de 300 milhões.

“Se todos os países se comprometessem com o grau de ambição que o Brasil está propondo atingiríamos um aquecimento global de mais 4ºC até o fim do século”, avalia Joana Portugal, do Programa de Planejamento Energético da Coppe/UFRJ. Ela é uma das autoras do capítulo 4 do relatório, sobre a lacuna de emissões.

Portugal falou ao OC de seu escritório, no Rio. Leia a entrevista:

*

No grupo do G20, só Brasil e México apresentaram metas que levam ao aumento de emissões. Recentemente, foi anunciada a suspensão da última NDC do México, que a Justiça do país considerou regressiva em relação à anterior. O Brasil ficou sozinho nessa liderança?

Esses relatórios têm 78 autores de diversos países, começamos a trabalhar 1 ano atrás, e há uma certa inércia para atualizar coisas que foram anunciadas recentemente. Trabalhamos contra o relógio para submeter o relatório antes da COP26. Avaliamos metas e compromissos anunciados de 126 países, que correspondem a aproximadamente 50% das emissões globais da economia mundial. O que definimos e avaliamos para o Brasil foram as metas anunciadas no ano passado, na verdade uma pedalada nas emissões, porque houve uma atualização da métrica de conversão de gases de efeito estufa que se traduz num aumento da emissão absoluta em mais ou menos 300 a 400 megatoneladas [milhões de toneladas] de CO2 equivalente, face à primeira NDC, submetida pelo Brasil em 2015. Estamos trabalhando com uma série de premissas que ainda não foram oficializadas, nos baseamos nos documentos anunciados pelos ministérios da Ciência e Tecnologia e do Meio Ambiente. Por isso temos cenários com metas das NDCs e promessas anunciadas. No ponto de retorcer a ambição climática me parece que o Brasil foi o único país que se comprometeu com uma meta menos ambiciosa do que em 2015.

No caso da pedalada do Brasil, o relatório cita 307 milhões e não 400 milhões de toneladas, como já divulgado. Por quê?

O relatório cita 307 e outros estudos mencionam 400 megatoneladas, infelizmente temos alguma incerteza associada. É nesse intervalo aí.

Agora que a ONU reconhece isso, o que pode ser feito em relação à NDC do Brasil?

Se retomássemos a primeira NDC brasileira e caminhássemos daí, esquecendo essas pedaladas anunciadas, já seria com certeza um bom avanço. E se todos os países na verdade se comprometessem com o grau de ambição que o Brasil está propondo atingiríamos um aquecimento global de mais 4oC até o fim do século.

Na nossa avaliação, as NDCs submetidas e anunciadas levam a um aquecimento global de 2,7ºC acima dos níveis pré-industriais. Estamos caminhando na direção certa, mas muito devagar. As várias estratégias que foram anunciadas de longo prazo para neutralidade de carbono em 2050 são um fator de esperança, mas muitas dessas metas para neutralidade de carbono são muito vagas e confusas e não estão acompanhadas de medidas de curto prazo para 2030 das NDCs que sejam tão ambiciosas quanto a própria meta climática, daí temos essas lacunas entre o que é intencional e anunciado para longo prazo e depois o que é prometido e entregue, implementado, em curto prazo.

A impressão que fica é que o Pnuma jogou a toalha. O discurso de “ainda dá tempo, vamos lá!”, que sempre marcou o Emissions Gap, parece ter sumido. O título já deixa isso claro. Qual é a chance de fecharmos essa lacuna de 28 bilhões de toneladas nos próximos oito anos?

Estamos cada vez mais nos distanciando de um cenário catastrófico de aumento de temperatura de 5oC. Há alguns anos esse era o cenário em que eu talvez colocasse a minha aposta. Estamos nos aproximando de um aumento médio de temperatura de 2,7oC, muito aquém do que é desejável e do que é considerado seguro pelo conhecimento científico atual. Mas como vamos fechar essa lacuna e ter uma redução de emissões anuais de pelo menos 13 giga toneladas de CO2 equivalente, quando na verdade caminhamos na direção oposta, de aumento das emissões? Nós, na ciência, oferecemos as estratégias e as implicações, mas cabe aos decisores políticos implementar para fechar essa lacuna.

Em termos de opções, num primeiro momento, temos que ter taxas de desmatamento zero, e não apenas o desmatamento ilegal, porque na verdade nunca entendi o que é desmatamento legal. Temos, sim, que aproveitar as oportunidades, nos setores de uso do solo, agricultura, pecuária e florestas, e canalizar e promover a fixação de dióxido de carbono. Mas a conjuntura atual do Brasil vai no caminho inverso. Mais uma vez atingimos recordes de desmatamento, mais de 10 mil km2 no último ano. Houve também grande aumento dos níveis de desmatamento e queimadas no Pantanal e no Cerrado. Não estamos aproveitando essa oportunidade única. O capítulo que avalia as emissões de metano mostra que temos que olhar além do dióxido de carbono. Com medidas de baixo custo e elevado retorno econômico podemos reduzir as emissões ​antropogênicas de metano em 45%.

O relatório mostra que o esforço global deveria ser sete vezes maior. É possível dimensionar a contribuição do Brasil?

As novas atualizações das NDCs se traduzem numa redução da lacuna em 7,7%, e para cenários de 1,5oC precisamos reduzir as emissões em 55%. Estamos de fato bem além do que é desejado. Não fizemos avaliação nacional, mas algumas semanas atrás saiu um trabalho de colegas europeus que mostra que contabilizando os setores de energia e uso do solo o Brasil é o quarto maior emissor histórico de gases estufa. Então, se avaliarmos as emissões de uso do solo, esse argumento (da responsabilidade histórica) cai facilmente. Quando falamos de emissões de gases estufa, os impactos e implicações de danos e perdas são globais. Precisamos ter na mesma mesa países do Hemisfério Sul, do Hemisfério Norte, com diferentes capacidades, com diferentes fluxos financeiros, e atuar de forma unânime para mitigação da mudança do clima. O capítulo do relatório que avalia os pacotes de recuperação econômica mostra que a maioria dos resgates financeiros canalizados no pós-pandemia está apoiando indústrias hipercarbônicas e carbono-intensivas, em vez de tecnologias baixo carbono. Estamos perdendo oportunidade que seria única para garantir e cumprir os compromissos em 2030.

Na sua avaliação, qual será o papel do Brasil na COP26?

Não posso antever, mas posso dizer qual eu gostaria que fosse. Eu tive a oportunidade de apoiar um dos estudos técnicos que deram origem à NDC brasileira em 2015. Foi um grande orgulho entender que a NDC era cientificamente muito robusta. Poderia ter sido mais ambiciosa? Sem dúvida. Estava em linha com os compromissos do Acordo de Paris? Não. Mas tecnicamente, cientificamente, era um trabalho muito robusto e sério. E o que estamos vendo agora, com anúncios de pedaladas, é na verdade uma grande lavagem verde, um greenwashing. Que nos faz perder tempo, e nós não temos tempo a perder. Então é frustrante ver um país e um governo tão capacitados, com negociadores de alto nível, altamente qualificados… o Brasil tem a oportunidade e o potencial de liderar a mitigação climática. Não tem tempo a perder com pedaladas em emissões, falsas lavagens verdes. Temos oito anos para atingir as metas que foram acordadas em 2015. E parece que estamos andando para trás.

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