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Três biografias de Stan Lee buscam homem por trás de mito do criador do Universo Marvel

Recém lançados no Brasil, Livros do brasilero Roberto Guedes e dos americanos Danny Fingeroth e Abraham Riesman analisam
Stan Lee entre atores com fantasias de Wolverine, Hulk e Homem-Amarnha na inauguração do restaurante Marvel Mania, em Los Angeles, 1997 Foto: Fred Prouser / Reuters
Stan Lee entre atores com fantasias de Wolverine, Hulk e Homem-Amarnha na inauguração do restaurante Marvel Mania, em Los Angeles, 1997 Foto: Fred Prouser / Reuters

É possível que boa parte da Humanidade já reconheça aquele velhinho de bigode e óculos escuros, o que faz pontas em todos os filmes do Universo Cinematográfico Marvel (MCU, na sigla em inglês). Se você não o conhecia, alguém deve ter cutucado seu ombro durante o filme: “Esse é o Stan Lee”. “Esse é o dono da Marvel”, quem sabe. Ou “Esse velhinho criou tudo da Marvel.”

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O velhinho não criou tudo da Marvel, tampouco foi dono. Foi, sim, um funcionário-estrela da editora que entrou lá aos 17 anos e, na prática, nunca saiu. Ele participou da criação dos maiores personagens da casa editorial e virou seu porta-voz. Não foi o único criador, porém, e o fato de ter sido pintado como tal é o ponto mais controverso de sua vida.

Stan Lee morreu em 2018, aos 95 anos. Três biografias suas acabam de sair no Brasil. Mesmo que todos contem a mesma história, cada autor parte de um ângulo diferente. Há o fã apaixonado Roberto Guedes, único brasileiro e autor do livro mais resumido, “Sr. Maravilha”. Há o retrato extenso e dramático de Danny Fingeroth, que trabalhou com Lee dentro e fora da Marvel, em “A espetacular vida”. E há uma reportagem profunda, mas angulada para desbaratar o marketing (e mentiras) em torno do biografado em “Invencível”, de Abraham Riesman.

Lee nasceu Stanley Martin Lieber em 1922, filho de imigrantes judeus romenos em Manhattan. (O livro de Riesman é o único que traça a árvore genealógica até pogroms na Europa do século XIX.) O garoto tinha 6 anos no crash da bolsa de valores que desencadeou a Grande Depressão. Cresceu na penúria da época.

Chegou na Marvel — na época, uma editora que atendia por vários nomes e que publicava a revista Marvel Comics — porque o dono era um parente que empregava primos de qualquer grau. Em seguida, o adolescente estava trabalhando com o personagem Capitão América, sucesso criado pelos colaboradores mais importantes da casa, Joe Simon e Jack Kirby. Foi quando adotou a assinatura “Stan Lee”.

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Um desentendimento que pode ter sido provocado pelo próprio Lee (nenhuma biografia conclui) levou à demissão de Simon e Kirby. Lee virou editor de Capitão e outros gibis. Depois de servir na Segunda Guerra Mundial — sem deixar de colaborar com os quadrinhos —, ele assumiu a função de editor e roteirista-mor da Marvel. Seguem então quase duas décadas em que ele trabalhou em quadrinhos qualquer nota, mas acumulando experiência.

Em 1961, começa um período criativo intenso que leva a Marvel aos holofotes: Quarteto Fantástico, Homem-Aranha, X-Men, Homem de Ferro, Thor, Demolidor e Vingadores estreiam em questão de três anos. Coincidência ou não, o período começa quando Jack Kirby volta à editora — mesmo que ele ainda desconfie de que Lee tenha puxado seu tapete 20 anos antes.

Briga por crédito

E aqui começa a grande controvérsia. Lee tinha um jeito peculiar de roteirizar quadrinhos, que acabou batizado de “Método Stan Lee”. O “roteiro” podia ser uma sinopse ou uma conversa por telefone sobre o conteúdo da edição. Até um bilhete. A partir daí, o desenhista desenhava 20 páginas de história. Lee acrescentava os diálogos depois.

Numa situação de trabalho dessas, quem é o autor do gibi: Lee, que deu a sinopse? Ou os desenhistas, que bolaram a narrativa e o visual?

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A melhor resposta talvez fosse: os dois. Mas o que se seguiu não colaborou com essa solução salomônica. Lee sempre ganhou mais destaque no marketing da Marvel e na imprensa como criador dos personagens, e às vezes se afirmou como único criador. Mesmo depois que ele parou de escrever e editar, as revistas saíam com a chamada “Stan Lee apresenta”. Os colegas não tinham essa honra.

O livro de Fingeroth detalha, por exemplo, as desavenças filosóficas entre Lee e Steve Ditko. O primeiro desenhista de Homem-Aranha e Dr. Estranho viria a declarar que “ter uma ideia não é nada, porque, até que se torne uma coisa física, é apenas uma ideia”, justificando-se como principal criador dos personagens. Lee retrucava: “a pessoa que teve a ideia é o criador.”

Somando à controvérsia, há desenhistas que alegam ter apresentado desenhos dos personagens antes de existir roteiro, ou que escreviam as histórias sem receber crédito. Pesa Lee ter sido funcionário da Marvel, enquanto os desenhistas eram free-lancers. A briga por quem merece mais crédito por Homem-Aranha, Vingadores e companhia segue até hoje entre fãs e historiadores.

Abraham Riesman diz que não há registros confiáveis para resolver a controvérsia, mas dá voz aos críticos que veem Jack Kirby como criador mais importante que Stan Lee. Danny Fingeroth se aprofunda em todos os lados do debate, mas não se posiciona. Guedes, também autor de biografias de Steve Ditko e Kirby, aponta o dedo contra os fãs que “não teriam vergonha em questionar, de maneira cínica, e até leviana, o papel de Stan Lee na construção do Universo Marvel”.

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Seja como for, as principais inovações atribuídas a Lee são os personagens com uma camada de fracasso — a arrogância de Tony Stark/Homem de Ferro, os incompreendidos X-Men, os boletos atrasados de Peter Parker — e a interligação dos personagens em um universo só, o que se explorava comercialmente tanto na época quanto nos filmes de hoje: você tem que ler/assistir a tudo.

Hiperatividade e ambição

Riesman é taxativo: “Stan foi um homem cujo sucesso veio mais da ambição do que do talento”. (Guedes apontaria o dedo contra ele.) Fingeroth enxerga mais hiperatividade do que ambição: “Parece possível que Lee, embora muito inteligente, criativo e dedicado, tivesse alguma forma de DDA ou TDAH, o que o tornava mais adequado para um fluxo interminável de trabalhos curtos”. (Não há diagnóstico oficial.)

O que nenhum biógrafo nega é a energia da figura. Nos anos 1960, escrevendo e editando centenas de páginas por mês, Lee ainda tentou carreira de palestrante em universidades e até um programa de TV. A maioria das participações no cinema vieram depois de ele completar 80 anos. Aos 90 e poucos, ele ainda tinha o dedo em quadrinhos, livros, programas televisivos e ia às convenções conhecer fãs.

Era natural, aponta Fingeroth, que a pessoa de mais vigor tivesse mais destaque numa carreira no entretenimento. Jack Kirby era muito turrão para os holofotes — “Minha [primeira] lembrança é de Jack sentado, desenhando, fumando e resmungando”, Lee diz numa citação do livro de Guedes (que carece de citação das fontes). Ditko era um objetivista randiano que não se deixava nem fotografar. Outros colegas não davam bola para o destaque. Lee era o inverso, e havia um vácuo para ser preenchido.

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Enquanto Guedes e Fingeroth dedicam o grosso de seus livros ao momento mágico da Marvel nos anos 1960, com detalhes sobre a criação de Homem-Aranha e companhia, Riesman passa relativamente depressa por esse momento.

Seu “Invencível” vai fundo no que está na penumbra: a Stan Lee Media, empreendimento durante a bolha pontocom com um sócio muito suspeito — Peter Paul, que acabou preso no Brasil —, e as figuras esquisitas que se associaram a Lee na última década — como um que supostamente queria amostras de sangue do astro para um esquema de autógrafos sui generis.

Em comparação final, a biografia de Riesman é uma graphic novel contemporânea em que o protagonista tem sérias falhas de caráter. Em “A espetacular vida” de Fingeroth, o biografado-herói tem pés de barro como o típico super-herói Marvel, mas ainda é um herói. E o “Sr. Maravilha” de Guedes é um super-herói pré-Lee, com vilões bem definidos e a moral do seu lado. Você escolhe qual Lee quer ler.


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Invencível: a ascensão e queda de Stan Lee

Autor: Abraham Riesman. Editora: Globo Livros. Tradução: André Gordirro. Páginas: 400. Preço: R$ 69,90.

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A espetacular vida de Stan Lee

Autor: Danny Fingeroth. Editora: Agir. Tradução: Flora Pinheiro. Páginas: 488. Preço: R$ 79,90.

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Sr. Maravilha: a biografia de Stan Lee

Autor : Roberto Guedes. Editora: Noir. Páginas: 256. Preço: R$ 68,46.