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Cultura

'Mulheres que correm com os lobos' ressurge como fenômeno comportamental e inspira de coachs a sexólogas

Segundo mais vendido em 2021, livro ajuda leitoras a encontrarem seu lado 'selvagem' e a mudarem suas vidas
Mariana Bandarra, que criou retiro em torno do livro Mulheres que Correm com os Lobos Foto: Thiéle Elissa
Mariana Bandarra, que criou retiro em torno do livro Mulheres que Correm com os Lobos Foto: Thiéle Elissa

RIO —  A jornalista catarinense Ana Lavratti, de 51 anos, conta que não precisou ler “Mulheres que correm com os lobos”, fenômeno editorial da americana Clarissa Pinkola Estés, para que o livro mudasse sua vida. Ela descobriu seus ensinamentos por meio do Grupo Lobas, um dos muitos projetos de desenvolvimento feminino inspirados no best-seller de não ficção, que surpreendeu o mercado ao voltar recentemente às listas de mais vendidos. Até o fim de outubro, foi o segundo livro que mais vendeu no país este ano.

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A obra é famosa por fazer uma apologia da força ancestral feminina resgatando arquétipos e mitos antigos. Essas histórias têm ajudado Lavratti e diversas leitoras a se conectarem com seu “lado selvagem”. Nos encontros do Grupo Lobas, ela descobriu a lenda do Barba Azul, que lhe ensinou a confiar mais em seus instintos, a reconhecer os predadores masculinos e a seguir seus sonhos. Já com o Patinho Feio, conta, percebeu que merece “agrados magistrais”, adquirindo o hábito de escrever cartas de amor a si própria e a criar ritos diários de oferendas.

— As histórias ensinam nós, mulheres, a valorizar mais os nossos vínculos e a nossa natureza, aquilo que é nosso, a condição da qual a gente não pode fugir — diz Lavratti. — Aprendi que quem só diz sim diz não para si. Eu nunca deixei de trabalhar por conta da família, mas era como se precisasse do consentimento do meu marido e da minha filha para seguir os meus sonhos. Eu que me coloquei nesta condição, por amor.

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Leituras coletivas e memes

Lançado originalmente em 1995, “Mulheres que correm com os lobos” é o que o mercado chama de long-seller, um livro que nunca sai de moda e sempre vende bem. Mas o que vem acontecendo do segundo semestre de 2019 para cá, segundo a própria Rocco, sua editora no Brasil, é fora da curva. Em 2020, foi o 11º livro mais vendido do ano, com 44 mil exemplares, segundo a PublishNews. Em 2021, vendeu 58 mil até semana passada, pulando para segundo no ranking anual.

O revival de “Mulheres que correm com os lobos” na era digital trouxe um fato novo: ele acabou se tornando também um fenômeno cultural, gerando grupos de estudos e muitos memes nas redes sociais. Em leituras coletivas, mulheres discutem meios de aplicar na vida cotidiana algumas ideias de Pinkola — como, por exemplo, o resgate da natureza instintiva da mulher, que teria se perdido na sociedade contemporânea. Esse esforço vem inspirando projetos nas áreas mais diversas, de coaching a grupos terapêuticos como o Projeto Lobas (cujo lema é “Despertamos sua essência de loba”). Criadores do podcast “Talvez seja isso”, que “desmistifica os segredos do feminino”, Barbara Nickel e Mariana Bandarra idealizaram ainda o “Planejamento selvagem”, um programa on-line de desenvolvimento pessoal.

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A assessora de empreendedorismo digital Mariana Noboa revela que o livro é “o instrumento de estudo” da maior parte das clientes que querem se reinventar profissionalmente. A sexóloga Malu Paes Leme é outra que trouxe as ideias da americana para a sua área de expertise.

— Creio que este é o maior desafio: transpor das histórias e mitos do livro os caminhos e soluções para que a mulher recupere seu poder ancestral nos dias de hoje — diz a psicóloga clínica Cássia Simone, que trabalha a obra com seus pacientes desde 1995.

Encontros na Lua Nova

A leitura do livro, acredita Simone, tem feito muitas mulheres deixarem o papel que lhes é reservado na cultura patriarcal. No projeto Planejamento Selvagem, isso é feito por meio de uma “jornada” de "resselvagização". Todo mês, na lua nova, reúnem-se em videoconferência para definir objetivos que refletem o que elas “querem de verdade” — e não o que “o que te disseram que era possível”. Nos cursos, as alunas aprendem a “usar os ciclos da natureza para fazer o tempo trabalhar ao seu favor” e conhecem “práticas simples e poderosas para destravar”, entre outras coisas. O grupo também já organizou um retiro de quatro dias de atividades no mato, onde aprofundou sua conexão selvagem.

— Na pandemia, as mulheres ficaram ainda mais sobrecarregadas, especialmente as mães com filhos na escola on-line — diz a cocriadora Mariana Bandarra. — Pinkola fala justamente da importância de fechar a porta, de aprender a dizer: “Agora não, a mamãe vai trabalhar”. As mulheres estão dizendo não, saindo dos caminhos que foram desenhados para elas, de seus empregos exploratórios e relacionamentos tóxicos.

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O ressurgimento de “Mulheres que correm com os lobos” se deve muito à popularização recente dos chamados movimentos do Sagrado Feminino — uma corrente em que rituais na natureza são usados como ferramentas para o autoconhecimento. Nesse ambiente fala-se muito, por exemplo, na busca de uma Deusa Interior. A figura do lobo é recorrente no livro de Pinkola porque, segundo a autora, o animal tem características parecidas com a feminina, como a intuição e o faro aguçado.

'Puro instinto'

Nem todas as mulheres, porém, se identificam com esta ideia. A publicitária Natália Guimarães leu o livro pela primeira vez na quarentena e acredita que Pinkola fala de “todas as mulheres como uma coisa só”. Para a publicitária, a autora americana se apropria de histórias orais de outros países sem abordar questões como raça ou colonização, o que ela critica.

— É como se mulheres brancas que ajudaram a colonizar e civilizar povos originários quisessem correr com os lobos de povos que elas ajudam a dizimar — acredita. — Por isso, acho que o livro não é pra todas as mulheres. E talvez a autora nem queria mesmo que fosse. Claro que vários pontos do livro me tocam, mesmo sendo uma mulher negra. Mas outros não podem se aplicar a minha realidade. Como conseguir trabalhar seu “eu interior” e seu amor próprio quando no mundo existe racismo esperando todos os dias por nós?

Mariana Bandarra pontua que o livro ganha força quando é trazido para a prática da atualidade, mas concorda que, até por ter sido publicado em 1995, tem suas limitações.

— É perigoso tratar um livro como se fosse uma bíblia. É claro que tem pontos que podem ser criticados. A Pinkola é uma mulher de uma geração que não tratava de assuntos de que falam agora — pontua Mariana.

Criadora do pioneiro Grupo Lobas, a psicóloga Sonia Farias vem desde os anos 1990 trabalhando o livro com grupos diversos de mulheres em Santa Catarina, especialmente em presídios e hospitais. Com a pandemia e a difusão dos cursos on-line, porém, ela conta que passou a trabalhar com mulheres de outros países, “até na Rússia e em Portugal”.

— Ao ser domesticada, a mulher selvagem perdeu à sua essência — diz Farias. — Na selva, o animal é puro instinto, enfrenta as dificuldades frente à frente. Mas fora dela ele perde sua essência, foco e disciplina.