Um pária na COP26

Isolado por sua agenda ambiental, Brasil vai à cúpula querendo mostrar mudanças, mas sem dados favoráveis

Carolina Marins e Jamil Chade Do UOL em São Paulo e em Roma

Começam hoje as negociações da 26º edição da Conferência das Partes da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), a COP26. Durante duas semanas, líderes, empresários, ambientalistas, etc., discutirão formas de mitigar os avanços das mudanças climáticas.

Historicamente, o Brasil recebia destaque na COP por sua até então defesa do combate ao desmatamento e emissão de gases de efeito estufa. O cenário mudou, no entanto, ao longo do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), que transformou a pauta climática em mais uma agenda ideológica.

Depois de embates com países europeus envolvendo a pauta ambiental e o aumento dos desmatamentos e queimadas —tanto na Amazônia quanto no Cerrado e no Pantanal— o Brasil chega fragilizado à cúpula e com más notícias. Os dados de 2020 de desmatamento e emissões de carbono são os piores em mais de uma década. Ainda assim, a comitiva brasileira tem a missão de negociar um aumento no financiamento concedido pelos países ricos.

Esta COP é importante pois é a primeira após o Acordo de Paris ter substituído o Protocolo de Kyoto, o que ocorreu em 2020. No documento anterior, apenas países desenvolvidos se comprometiam com as responsabilidades de redução de danos. Agora, todos os que assinaram o Acordo de Paris se comprometem e começa a corrida para cumprir as metas.

"Essa COP é uma das mais importantes, porque não há mais debates sobre quais são as metas e regras. Agora é como a gente vai implementar", explica Ana Toni, consultora do Núcleo de Meio Ambiente e Mudanças Climáticas do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais).

Carl de Souza/AFP

Sem credibilidade

O encontro de Glasgow ocorre no momento de maior fragilidade internacional do Brasil. No Tribunal Penal Internacional, o governo de Jair Bolsonaro é denunciado por crimes contra a humanidade por conta do desmatamento. Na ONU, acumulam-se queixas formais contra o país pelo esvaziamento dos mecanismos de controle ambiental.

Enquanto isso, governos europeus caminham no sentido de iniciar a adoção de barreiras comerciais para exportações que não consigam provar que não geram desmatamento. Se não bastasse, fundos de investimento retiram recursos do Brasil, e supermercados e lojas estrangeiras começam um processo para barrar produtos nacionais que não tenham comprovação de que não geram danos ao meio ambiente.

Ciente de estar encurralado, o Itamaraty vem tentando, nos bastidores, romper com dois anos de uma política externa que isolou o país e transformou o Brasil em uma espécie de pária internacional.

Ernani Júnior/Instituto Homem Pantaneiro

O lugar do Brasil no mundo

Nesta semana, o governo brasileiro vai aderir a um novo pacto pela proteção das florestas, que será anunciado no dia 2 de novembro, e tem adotado uma narrativa de que passou a agir para tentar construir consensos. De fato, na semana passada, o Itamaraty reuniu os embaixadores da Europa em Brasília para explicar a postura do governo na conferência e garantir que vai adotar uma atitude construtiva.

Mas a operação de sedução da diplomacia esbarra em pelo menos dois grandes problemas. O primeiro deles é a profunda desconfiança internacional em relação ao Brasil. Se os negociadores nacionais tentam passar uma imagem de moderação, os dados de desmatamento mostram que a destruição ganhou um novo ímpeto nos últimos três anos.

Para negociadores estrangeiros, a credibilidade do Brasil hoje é "perto de zero" e apenas uma reversão nos números do desmatamento poderá restabelecer um clima de diálogo com potências estrangeiras. "Não adianta mais vir com um discurso conciliador. Agora, queremos provas de que as coisas vão mudar", admitiu ao UOL um diplomata europeu, sobre as relações com o Brasil.

O outro problema é a constatação de entidades internacionais, entre elas a ONU, de que o governo Bolsonaro promoveu um desmonte das estruturas da política ambiental no país.

Para negociadores, tanto brasileiros como estrangeiros, a COP26 não é apenas mais um encontro burocrático. Para o país onde a Amazônia tem a maior parte da floresta, o encontro representa a definição de seu lugar no mundo e de que forma o país espera se inserir na nova economia mundial.

Ueslei Marcelino/Reuters Ueslei Marcelino/Reuters
Isac Nóbrega/PR

O que o Brasil tem a apresentar

A composição e o tamanho da comitiva brasileira foi um mistério até as vésperas do encontro. O Itamaraty confirmou apenas a presença do ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, e a do embaixador Paulino de Carvalho Neto, secretário de assuntos de soberania nacional e cidadania, como chefe da missão.

A presença de Jair Bolsonaro e do Ministro das Relações Exteriores, Carlos França, já era dada como improvável na semana anterior. Em vez de participar do maior evento diplomático em anos, o presidente preferiu homenagear militares que lutaram na Segunda Guerra Mundial, na Itália, e fazer uma visita à cidade de seus antepassados, no norte do país europeu.

O motivo é simples: o governo brasileiro não tem notícias boas para levar. Pelo contrário. No primeiro ano de implementação do Acordo de Paris, o Brasil tem apenas dados de aumento do desmatamento e das emissões de carbono.

O relatório mais recente do Observatório do Clima mostrou que o país aumentou em 9,5% a emissão de gases de efeito estufa em 2020, indo na contramão mundial, em que houve uma queda de 7%. As maiores causas dessa emissão são os desmatamentos e queimadas na Amazônia, Cerrado e Pantanal.

O Brasil está indo com uma imagem terrível. O governo brasileiro achou que fazendo uma página de crescimento verde e ter um stand bonito na COP ia mudar a imagem. Os números são números. O que o Observatório do Clima mostra são fatos."

Ana Toni, consultora do Núcleo de Meio Ambiente e Mudanças Climáticas do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais).

Getty Images

O Brasil tem como meta para o Acordo de Paris a redução de 37% das emissões de gases de efeito estufa até 2025, em comparação com os valores de 2005. Também a diminuição de 43% nas emissões até 2030. Por fim, zerar a emissão de carbono líquido até 2060.

Porém, em 2020, o país registrou o maior número de emissão desde 2006: 2,16 bilhões de toneladas de carbono. Nesse ritmo, ficará cada vez mais difícil cumprir os termos do acordo.

Tenho certeza de que nessa COP outros países, a mídia, membros da sociedade civil vão denunciar o Brasil como quebrando o Acordo de Paris". Ana Toni, consultora do Núcleo de Meio Ambiente e Mudanças Climáticas do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais).

Mateus Bonomi/AGIF/Estadão Conteúdo

Pedalada ambiental

Em 2020, o Acordo de Paris completou cinco anos e os países deveriam renovar os seus compromissos individuais de redução em suas metas, as chamadas NDCs (do inglês Nationally Determined Contributions). O então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, utilizou do momento para fazer uma "pedalada" e apresentou uma NDC muito menos ambiciosa e que retrocedia nas promessas brasileiras.

O documento manteve as metas de reduções de 37% nas emissões até 2025 e de 43% até 2030. Porém o ano base de 2005 sofreu uma atualização dos números brutos: as emissões foram revisadas de 2,1 bilhões de toneladas para 2,8 bilhões de toneladas.

Em vez de atualizar as porcentagens e fixar números brutos de redução, o então ministro manteve a promessa, permitindo uma janela maior de desmatamento.

Além disso, o novo documento tornou a meta de neutralidade até 2060 apenas uma intenção e não um compromisso, e condicionou seu cumprimento ao recebimento de US$ 10 bilhões de dólares.

Estamos começando agora o Acordo de Paris e o Brasil já começa como o primeiro violador, aumentando as suas emissões na própria NDC e não dando nenhuma segurança de que vai conseguir implementar uma NDC que já foi aumentada". Ana Toni, consultora do Núcleo de Meio Ambiente e Mudanças Climáticas do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais).

Amazônia em estado de emergência

CARL DE SOUZA / AFP

Desde o primeiro ano do governo Bolsonaro, em 2019, o desmatamento e as queimadas na Amazônia passaram a ser o principal motivo de atritos e rupturas com líderes internacionais. Bolsonaro protagonizou embates diretos com o presidente francês Emmanuel Macron por causa de suas críticas às queimadas.

No mesmo ano, Alemanha e Noruega suspenderam os repasses ao Fundo Amazônia —que financiava ações de preservação— justamente devido ao aumento do desmatamento na floresta.

Em 2020, as enormes queimadas no Pantanal serviram de estopim para a paralisação das negociações entre União Europeia e Mercosul, que até hoje seguem congeladas.

Para quem estuda e trabalha diretamente com os desmatamentos das florestas, a preocupação internacional com o Brasil é justa e deve ser ainda mais enérgica.

"Nós temos que fazer uma moratória de 10 anos, no mínimo, de desmatamento na Amazônia, e acho que não temos que discutir se é legal ou ilegal. Para a natureza, as nossas convenções não fazem a menor diferença", argumenta Luciana Gatti, pesquisadora do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).

Floresta morre mais do que cresce

Gatti é uma das autoras de um estudo publicado em julho deste ano na revista Nature que mostra como a floresta amazônica tem emitido mais gás carbônico do que é capaz de absorver.

"Quando a gente diz que a Amazônia emite mais do que absorve, é porque a floresta Amazônica está conseguindo compensar apenas 1/3 de todas as emissões humanas", explica a pesquisadora.

Na natureza, a floresta, em teoria, é capaz de absorver grande parte de suas próprias emissões de carbono —que ocorrem naturalmente do processo de degradação— e também as emissões humanas. Mas nos níveis atuais de desmatamento, a Amazônia está perdendo essa capacidade.

Ela explica que a temperatura média de uma área aumenta quando há desmatamento. Quanto maior a área desmatada, maior a temperatura. A elevação impacta direta —e negativamente— as vegetações típicas de florestas úmidas que permanecem preservadas ao redor. Ou seja, o desmatamento e as queimadas impactam também nas áreas ainda preservadas, matando essas vegetações.

No sudeste da Amazônia, onde o aumento da temperatura foi maior, a floresta em si está emitindo mais carbono do que está absorvendo. Ou seja, ela está morrendo mais do que está crescendo."

Luciana Gatti, pesquisadora do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).

Amanda Perobelli/Reuters Amanda Perobelli/Reuters
Domingos Peixoto/Agência O Globo

O desmatamento não traz retorno econômico para o Brasil, já que é um processo todo ilegal. Não à toa, enquanto o desmatamento cresce no país, o PIB cai, pois as atividades irregulares na floresta não geram riqueza para o resto da população.

A gente aumenta no desmatamento, a gente aumenta na agricultura —porque nós estamos usando hoje mais gado e na agricultura, hoje a principal emissão vem da criação de gado— e nem é o brasileiro que está consumindo esta carne. O brasileiro está consumindo osso". Luciana Gatti, pesquisadora do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).

Reprodução/Twitter

Menos floresta, menos chuva

Os efeitos dos números divulgados pelo Inpe e pelo Observatório do Clima já aparecem no Brasil.

Luciana Gatti explica que a floresta amazônica é a principal responsável pelas chuvas que ocorrem no país, em especial pelo seu processo de evapotranspiração, que joga milhões de litros de água na atmosfera e caem no país todo. São os chamados rios voadores.

Removendo a vegetação da floresta acima dos níveis aceitáveis —geralmente 20% da área— haverá menos árvores para produzir esses vapores, logo, menos chuvas.

No mesmo período em que há aumento na devastação ambiental, o país está exposto a tempestades de areia e a crises hídrica e energética.

Em apenas três anos de desmatamento enlouquecido, nós já estamos vendo, a cada ano, mais seca, a ponto de este ano termos tempestade de areia que ocorre em deserto". Luciana Gatti, pesquisadora do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).

O papel da COP

Poucos dias antes de ir para a COP, o Brasil lançou o Programa Nacional de Crescimento Verde, que pretende apresentar com mais detalhes na cúpula. O plano, no entanto, é muito criticado por especialistas por ser extremamente vago.

A esperança dos ambientalistas é de que a pressão internacional force o governo brasileiro a levar o tema a sério. Para Gatti, o ideal seria a COP ir além de cobrar metas, mas exigir obrigações.

"Acho que tem que parar de ser voluntária a redução das emissões. Tem que ter regras fortes, onde cada um tem que reduzir x% até tal data e a cada x anos avalia. Se não estiver cumprindo a meta, vai ter dificuldade comercial. Aí todo mundo vai acabar fazendo a sua tarefa", afirma Luciana Gatti.

RUSSELL CHEYNE/REUTERS

A culpa é toda nossa. A humanidade é 100% responsável pela mudança do clima. Isso está mais do que provado. Eu vou negar por questão de ideologia e tacar fogo no planeta? Não pode! Se esse tipo de gente não tem consciência, a gente tem que ter regras obrigatórias. Tem que ter um mecanismo que obrigue todos os países a reduzir as emissões. Sem exceções."

Luciana Gatti, Pesquisadora do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais)

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