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Brasil

Obras reinventam orlas e tentam salvar praias ameaçadas por urbanização e mudanças climáticas no Brasil

Após décadas de ocupação urbana em direção ao mar, e com o agravante das mudanças climáticas, país hoje tem litoral ameaçado. Intervenções são feitas em Fortaleza e Balneário Camboriú
Praia de Iracema, em Fortaleza, teve a faixa de areia ampliada; costa do Ceará sofre com a erosão Foto: Jarbas Oliveira / Agência O Globo
Praia de Iracema, em Fortaleza, teve a faixa de areia ampliada; costa do Ceará sofre com a erosão Foto: Jarbas Oliveira / Agência O Globo

RIO — Após décadas de ocupação urbana em direção ao mar, e com o agravante das mudanças climáticas, o Brasil hoje tem o litoral ameaçado. Segundo levantamento do MapBiomas, nos últimos 36 anos, o país perdeu 15% de suas praias e dunas, e uma das consequências é a proliferação de obras de proteção costeira. Diante do risco de praias serem engolidas, a onda de “renaturalizar” espaços ganhou força. Em Balneário Camboriú (SC), a Praia Central, encolhida ao longo do tempo, ganhou mais areia, mas a obra tanto revolveu o fundo do mar que pode ter atraído tubarões. Em Fortaleza, 109 intervenções, entre alargamentos de faixas de areia, espigões e diques, são o retrato de um boom de retoques na paisagem que vai estar na pauta dos debates ambientais daqui para a frente.

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Para Jules Soto, curador do Museu Oceanográfico do Vale do Itajaí, a Praia Central, de “Dubai brasileira”, virou problema emergencial. Arranha-céus aglomerados junto ao mar formaram um paredão de sombra enquanto a praia desaparecia.

— Não existia mais praia. Essa obra era a melhor medida a ser tomada — afirma Jules. — Uma praia possui características sistêmicas, como restinga, dunas, desembocadura da água doce, fauna. Nada disso era visto mais. Ficou um resto de areia, que era perdido em caso de ressaca.

Uma obra de R$ 68 milhões da prefeitura visa a conter o avanço do mar sobre o calçadão em dias de ressaca, a perda de diversidade marinha e o bloqueio da circulação de ar pelos prédios — além de resolver uma questão sanitária, já que uma das funções dos raios ultravioletas é inibir a proliferação de parasitas. Até novembro, a faixa de areia que chegou a ficar com 25 metros, quase a metade do tamanho original, deverá alcançar 70 metros.

Sob a sombra: espigões taparam o sol em Balneário Camboriú, mas obras de ampliação trouxeram tubarões Foto: Divulgação
Sob a sombra: espigões taparam o sol em Balneário Camboriú, mas obras de ampliação trouxeram tubarões Foto: Divulgação

70 mil hectares perdidos

Os projetos avançam à medida que cientistas alertam para os efeitos das mudanças climáticas. As obras na Praia de Camburi, em Vitória (ES), ficaram prontas no ano passado. A Praia de Canavieiras (SC) passou por remodelação entre 2019 e 2020. No estado, há experiências mais antigas, como a da Praia Central de Balneário Piçarras, em 1999, e entre 2012 e 2013. Florianópolis já encomendou estudos para fazer a ampliação de Ingleses, Jurerê Tradicional e Armação. A Praia de Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco, foi alargada em 2013. Há muitos exemplos de ampliação e poucos do inverso, como o caso de João Pessoa, na Paraíba, considerado uma referência por ter, ao longo dos anos, preservado suas características originais e suas dunas, o que a livrou de intervenções mais drásticas.

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Na quarta-feira, o MapBiomas apontou que o país perdeu, desde 1985, 15% de sua área costeira, ou cerca de 70 mil hectares. A pressão imobiliária está por trás dessa destruição, além de empreendimentos de criação de animais marinhos e de extração de sal. O Rio é o estado que mais perdeu superfície no período (49%)

O geólogo Pedro Walfir, do MapBiomas, diz que as soluções de engenharia para o quadro de degradação serão cada vez mais necessárias:

— Com o aquecimento global e a consequente tendência de subida do nível do mar, as cidades edificadas sobre dunas e praias sofrerão cada vez mais risco de erosão. Se nada for feito, os calçadões serão engolidos.

“Renaturalizar”

Em vez de espigões e píers, os especialistas defendem mais obras de “renaturalização”. Mas Walfir observa que os impactos das grandes obras ainda são desconhecidos. O professor de Oceanografia Rodrigo Mazzoleni, da Universidade do Vale do Itajaí, acompanha o surgimento de tubarões em Balneário Camboriú. Os animais, segundo ele, são comuns nas enseadas, mas, ao se revolver o fundo do oceano para extrair a areia do alargamento, podem ter se aproximado mais.

— Quando se faz alguma intervenção no meio ambiente, é esperada a resposta de organismos. A draga remexe o fundo da areia e, com isso, sobem camarões ou outras pequenas espécies que servem como alimento. Mas esses tubarões não chegam a um metro de comprimento e são praticamente inofensivos ao homem — explica Walfir, defendendo o monitoramento constante da costa. — Esse projeto é a prova da nossa incompetência, porque a natureza se autorregula. Se isso não aconteceu, é porque fizemos algo errado.

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Em plebiscito realizado em 2001, 71% da população apoiavam a obra.

— A partir das 14h, você não tinha mais sol na praia — conta o surfista Willian Cardoso, da Liga Mundial, que já viu ressacas invadirem o calçadão, levarem quiosques e está animado com o efeito nas ondulações. — Vi amigos pegando ondas incríveis, que não eram vistas antes.

O prefeito de Balneário Camboriú, Fabrício Oliveira (Podemos), admite que não há previsão de ações para limitar as construções na cidade, apesar de “a cidade já ser muito adensada”.

Somente na Região Metropolitana de Fortaleza, foram identificadas 109 estruturas de proteção costeira, de acordo com pesquisa do geógrafo Eduardo Lacerda, coordenador do projeto Planejamento Costeiro e Marinho do Ceará. A maioria delas, espigões e entroncamentos, estruturas rígidas que protegem a areia. Na região, já foram feitos três grandes aterramentos: a obra do Porto do Mucuripe, há 80 anos, a ampliação da Praia de Iracema, em 2001, e, há dois anos, a reforma deste aterro para engordar a Praia dos Diários e do Náutico. Em sua pesquisa, Lacerda constatou que 60% dos 573 quilômetros de costa no Ceará já foram alterados, sendo 30% em processo de erosão e 17% em tendência erosiva.

— A cidade de Fortaleza, ao longo dos anos, foi expandindo e a praia diminuindo, porque as construções foram na direção do mar. E, no clima semiárido, há aumento das secas — explica ele, que se preocupa com lançamento de prédios de mais de 40 andares próximos à orla. — Daqui a 20 anos, isso exigirá nova ampliação da praia.

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Impacto incerto

Com investimento de R$123 milhões, a prefeitura aumentou em 80 metros a faixa de areia. No momento, são concluídas as obras do calçadão, com 707 novos boxes comerciais e espaços de lazer. Após o Ministério Público Federal contestar o projeto porque o estudo de impacto ambiental teria sido feito há 10 anos, o município contratou institutos para avaliar os efeitos sobre corais de recife e botos.

— O estudo original era muito frágil, nem considerava a presença de botos e tartarugas. Agora ainda não sabemos se haverá impacto — afirma Marcelo Soares, do Instituto de Ciências do Mar (Labomar) da Universidade Federal do Ceará. — O ideal teria sido instalar uma bomba para levar a areia das praias do leste para as praias ao oeste do Porto, o responsável por interromper o fluxo de sedimentos nesse trecho. Seria uma solução mais barata e de menor impacto ambiental.

Procurado, o secretário de Infraestrutura de Fortaleza, Samuel Dias, afirmou que, após questionamentos do MPF, estudos não indicaram “impacto significativo” com a ampliação da praia.