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Entenda o confronto entre Rússia e Turquia na Síria

Conflito põe os dois aliados em lados opostos, mas ambos querem evitar guerra aberta
Comboio militar turco estaciona perto do posto de fronteira de Bab al-Hawa, no dia 2 de março Foto: AAREF WATAD / AFP
Comboio militar turco estaciona perto do posto de fronteira de Bab al-Hawa, no dia 2 de março Foto: AAREF WATAD / AFP

O acordo de cessar-fogo acertado por Turquia e Rússia , as duas potências que regem o cenário militar e, até certo ponto, político na Síria, é uma tentativa de evitar que a situação na província de Idlib saia de controle, o que poderia levar ao confronto direto entre os dois lados.

Depois de 10 anos de guerra civil, o Noroeste sírio é o último reduto dos grupos armados de oposição ao regime de Bashar al-Assad, e desde dezembro é cenário de uma ofensiva do governo para retomar a área. Os russos apoiam a ofensiva com bombardeios aéreos diários. A Turquia apoia as milícias que lutam contra Assad, e nas últimas semanas perdeu dezenas de militares em ataques realizados pelos sírios.

Moscou e Ancara estão visceralmente envolvidas no que já é um dos mais longos conflitos do século. No caso russo, por uma questão estratégica e histórica: os laços entre os dois países vêm desde os anos 1970, quando o pai de Bashar al-Assad, Hafez, chegou ao poder e estabeleceu uma parceria com a então União Soviética, incluindo uma base naval em Tartus, a única posição russa no Mediterrâneo.

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No início da guerra civil, Moscou fornecia armas e apoio diplomático a Damasco, por exemplo vetando resoluções contra o regime no Conselho de Segurança da ONU. Em 2015, argumentando terem sido "convidados" pelo governo sírio, os russos iniciaram uma intervenção militar, majoritariamente aérea. O alvo prioritário era o Estado Islâmico, na época ocupando grandes áreas do país, mas depois as forças russas passaram a apoiar as forças de Assad contra milícias de oposição, sendo um fator decisivo para "virar o jogo" no conflito.

Já o apoio da Turquia aos opositores de Assad vem desde os protestos de 2011, na esteira da Primavera Árabe. Com o início logo depois da guerra civil, Ancara deu apoio logístico ao chamado Exército Livre da Síria, que tinha o suporte de países ocidentais, e também a milícias fundamentalistas, como a antiga Frente Nusra, ligada à al-Qaeda, hoje fundida a outros grupos e renomeada Tahir al-Sham.

A partir de 2014, a atuação militar turca foi ampliada, com operações contra milícias curdas sírias, que Ancara associa aos separatistas curdos turcos. O país mantém hoje cerca de 20 mil militares na Síria e também controla, com o apoio de grupos aliados, regiões outrora ocupadas pelas Forças Democráticas da Síria, lideradas pela milícia curda YPG (Unidades de Proteção do Povo), que atuou, em aliança com os Estados Unidos, contra o Estado Islâmico.

Evitando o conflito

Em 2015, um jato russo Sukhoi Su-24M foi abatido por um F-16 turco em um incidente perto da fronteira. O piloto conseguiu pular, mas foi morto por milícias de oposição, já em solo sírio. As relações entre Moscou e Ancara ficaram estremecidas. Um ano depois, os contatos foram retomados, retomando uma parceria que abarca os setores de gás e nuclear e levou a Turquia a comprar o sistema de defesa aérea russo S-400. A compra, casada com o desenvolvimento conjunto do sistema S-500, provocou fricções de Ancara com seus parceiros da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), a aliança militar liderada pelos Estados Unidos.

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Em 2018, numa cúpula em Sochi, na Rússia, Putin e Erdogan negociaram um primeiro-cessar-fogo em Idlib, e a Turquia estabeleceu 12 postos de observação na província para monitorá-lo. Pelo pacto, a Rússia concordou em suspender uma ofensiva de Damasco na província em troca do compromisso da Turquia de implementar uma zona desmilitarizada ao longo da linha de combate da qual os grupos considerados terroristas seriam expulsos. Ancara não cumpriu essa parte do acordo, e questiona se o Tahir al-Sham deve ser tratado como terrorista.

Esse é o argumento de Damasco para o fim do cessar-fogo e a ofensiva que, nas últimas semanas, deixou 59 militares turcos mortos. A Turquia pediu cobertura aérea dos aliados da Otan, que têm um compromisso de defesa mútua. No entanto, como observa um relatório recente do centro de estudos International Crisis Group, eles não foram além da condenação retórica da ofensiva sírio-russa, e não parecem dispostos a um confronto direto com Moscou por causa de um conflito que não ocorre em território da Turquia, que por isso não pode alegar ter sido agredida.

Com o novo cessar-fogo, a chance de um incidente grave fica reduzida. Mas, prevê o Crisis Group, a situação continuará tensa enquanto os dois lados tiverem interesses divergentes em relação ao futuro da Síria.