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Após suposta treta no pré-Carnaval, bloco da não monogamia tem casório

Aline Cunha e Gustavo Santana se casaram no bloco Não Monogamia Gostoso Demais, na segunda-feira (20) - Matias Maxx/UOL
Aline Cunha e Gustavo Santana se casaram no bloco Não Monogamia Gostoso Demais, na segunda-feira (20)
Imagem: Matias Maxx/UOL

Tereza Novaes

Colaboração para o TAB, do Rio

22/02/2023 04h00

Às 14h da segunda-feira de Carnaval, a praça da Harmonia, na zona portuária do Rio e epicentro da folia de rua, era um pedacinho do inferno na Terra. Sol inclemente, cheiro de urina e cerveja derramada pelos cantos, carros circulando em meio a multidão e barricadas de ambulantes. Quem ainda tinha algum juízo buscava as sombras das árvores e o refúgio nos bares e até no coreto, mas não havia espaço para mais ninguém.

Em um canto da praça, onde o sol não dava trégua, um grupo de foliões com figurinos caprichados em tons de vermelho começava a se organizar. Além dos onipresentes diabinhos, havia muito amor no ar. Arcos na cabeça com corações e a palavra amor, "representantes" do ministério do namoro (brincadeira que se multiplicou Brasil afora e faz referência ao novo governo) e uma plaquinha "Os Noivos", empunhada por um casal hétero. A noiva estava a caráter: maiô e meia arrastão brancos, véu e um buquê com flores vermelhas misturadas a canudos em forma de pênis, item bastante comum no comércio popular nesta época do ano.

A psicóloga Aline Cunha, 40, e o sociólogo Gustavo Santana, 39, estão juntos há "uma pandemia e um ano". Depois de um breve rompimento, eles reataram no Carnaval de abril do ano passado. "Curtindo um bloco e conversando, a gente resolveu que, já que havíamos voltado, era para casar. Fomos morar juntos em setembro", conta ela. "Como a gente tomou a decisão no Carnaval, decidimos casar no Carnaval. Somos amigos de uma galera que toca aqui, estávamos com eles desde que era só um estandarte", continuou Gustavo.

O estandarte que virou bloco é o Não Monogamia Gostoso Demais, e quem o carregou nesse primeiro desfile foi a administradora Priscila Burini, 39, que está desde o começo no bloco."Sou uma pessoa não monogâmica e a ideia é difundir a não monogamia como uma forma de amor diferente, mas válida e muito libertária. Foi isso que fez a gente querer fundar esse bloco, disseminar essa palavra."

"Nós dois juntos somos não monogâmicos desde sempre", afirma o noivo. Isso significa que eles podem beijar outras pessoas, inclusive no dia do casamento. Mas, ali, nem todos compartilham esse modo de se relacionar.

Após treta no pré-Carnaval, bloco da não monogamia faz casório com beijaço - Matias Maxx/UOL - Matias Maxx/UOL
Público do bloco NMGD busca uma sombra para se refrescar durante a festa
Imagem: Matias Maxx/UOL
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Imagem: Matias Maxx/UOL

"Tem gente no bloco que é monogâmica e apoia a não monogamia, eles só acham que não é o melhor para eles. Mas apoiam, entendem e reconhecem a não monogamia como uma forma de amor e de relacionamento muito válida", diz Priscila, a porta-estandarte.

Na confusão organizada que é o Carnaval carioca, uma lenda urbana propagou-se pelos grupos de zap. Semanas atrás, no pré-Carnaval, duas integrantes do Não Monogamia Gostoso Demais teriam chegado às vias de fato por causa de um rapaz, descrito como "macho de qualidade duvidosa". Integrantes do bloco ouvidos pela reportagem do TAB não confirmaram nem negaram a briga. Mas um deles afirmou: "O que é combinado não sai caro", para explicar que, se houve mal-entendido, a origem foi de falta de comunicação entre os envolvidos. "Às vezes, a pessoa acha que tem um amor livre, mas não tratou muito bem o seu próprio ciúme, a posse, e quando vem a primeira rejeição, ela sente", disse.

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Imagem: Matias Maxx/UOL
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De fato, parece ser mais fácil mostrar o bumbum do que abrir as intimidades vividas a dois, ou a três, ou a quantos for. A noiva fica um pouco constrangida em conversar com a reportagem do TAB, afinal sua opção de ser não monogâmica se tornará pública a amigos e familiares. Peço a ela, então, que explique o que é a não monogamia. "É amor compartilhado, carinho e cuidado", esclarece.

O noivo completa: "Somos uma família, vivemos juntos, fazemos planos juntos e construímos coisas juntos. Não tem como não ter cuidado com quem constrói contigo".

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Eu sou de todo mundo

O bloco começa com "Toda Forma de Amor", aquela canção de Lulu Santos que diz: "A gente vive junto, a gente se dá bem, não desejamos mal a quase ninguém". O repertório passa ainda por outras músicas que fazem jus à bandeira da não monogamia, como "Já Sei Namorar" ("Eu sou de ninguém, eu sou de todo mundo. E todo mundo me quer bem"), dos Tribalistas.

Pernaltas, artistas sobre pernas-de-pau que fazem a comissão de frente dos blocos e ajudam no fluxo da turba, nos levam à rua Joaquim Esposel. Os músicos estão cercados por uma corda segurada por alguns amigos e muitos foliões. Não há nenhuma nuvem no céu, quase nada de sombra, e rumamos para o Boulevard Olímpico, onde nesta época ficam ancorados os cruzeiros lotados de turistas. A visão é curiosa: navios brancos e altos como prédios de dez andares e pessoas nos observando lá de cima, como se estivessem em camarotes.

Não há nenhum vendedor ambulante à vista e parece impossível conseguir uma garrafa d'água, até que um rapaz fantasiado com uma longa cauda de esquilo surge com um saco cheio de garrafinhas e as distribui para os músicos, que derretem a olhos vistos. A banda estaciona na primeira sombra de um dos galpões que ladeiam o bulevar. A ideia é se recompor e seguir, mas antes haverá a cerimônia.

"Em um casamento não monogâmico, o importante é ter verdade. Não precisa ser um padre, pode ser uma mulher. Não é muito melhor uma mulher?", indaga Juliana Rossetto, 40, fundadora e saxofonista do bloco.

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Ela própria discípula da não monogamia, Juliana diz que o bloco não é apenas para as pessoas se divertirem, mas para espalhar a palavra. "Antes de tudo, a não monogamia é a evolução de um relacionamento machista, já que a não monogamia masculina sempre existiu. O que a gente quer é que as pessoas se sintam livres para sentir prazer com outras pessoas, porque isso é o natural."

Uma foliã, amiga do grupo, afirma que seu casamento de quase duas décadas melhorou com a não monogamia e o parceiro se tornou mais aberto a experiências sexuais entre eles mesmos, que antes eram tabus.

Posicionados à sombra, músicos fazem um corredor e tocam a marcha nupcial. Os noivos caminham até a dupla Priscila e Juliana, que os esperam para ler os votos. Para serem ouvidas por todos, as palavras são repetidas em coro, ecoando ao longe.

Após treta no pré-Carnaval, bloco da não monogamia faz casório com beijaço - Matias Maxx/UOL - Matias Maxx/UOL
Imagem: Matias Maxx/UOL
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"Você aceita de livre e espontânea vontade casar-se, prometendo mamá-la e respeitá-la na alegria e na tristeza, na suruba e no beijo triplo?" Ambos dizem sim e se segue um beijaço entre quase todos os integrantes do bloco. Champanhe estoura, confetes em formato de corações voam sobre o grupo. A música volta na sequência.

Pergunto aos recém-casados como será a noite de núpcias, se eles prepararam algo especial. "Vamos passar agarrados aos nossos travesseiros, estamos virados há várias noites por causa do Carnaval e vamos querer mesmo é dormir."