Descrição de chapéu

Beth Carvalho melhorou a qualidade e o caráter da música brasileira

Madrinha do Samba teve ideias dignas de uma artista consciente de seu papel social

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Rio de Janeiro

Beth Carvalho, que morreu nesta terça-feira (30), foi sua voz e suas circunstâncias. Para além das qualidades vocais, destacou-se por ideias e práticas corajosas, dignas de uma artista consciente de seu papel social. Nunca foi exatamente o que se esperava dela. Nunca foi unanimidade, o que só conta a seu favor.

Branca de classe média, ela poderia ter ficado na praia da bossa nova e da chamada MPB —que foi gestada em festivais como aquele de 1968 em que ela cantou “Andança”. Mas escolheu o samba. E uma escolha dessas não pode ser meramente profissional. Virou opção de vida, como o samba costuma exigir que seja.

Investida de sinceridade, conquistou o primeiro time dos compositores do gênero, como Cartola (de quem lançou “As Rosas Não Falam”) e Nelson Cavaquinho (de quem só não lançou “Folhas Secas” porque Cesar Camargo Mariano desviou a música para Elis Regina). Passou a transitar entre diferentes estilos e gerações. Cumprindo rito quase obrigatório, associou-se com paixão a uma escola de samba, a Estação Primeira de Mangueira.

Poderia, então, ter assegurado seu lugar de respeitável intérprete e personagem do samba. Mas resolveu mexer mais fundo nessa terra fértil. O disco “Nos Botequins da Vida” (1977) indicou já no título a decisão de ir aonde o samba nasce e circula, em vez de esperar pela chegada dele. Os melhores resultados foram os sucessos “Saco de Feijão”, do portelense Chico Santana, e “Olho por Olho”, de Zé do Maranhão e Daniel Santos.

Nas suas andanças por bares e subúrbios cariocas, Beth chegou à quadra do bloco Cacique de Ramos, onde ocorriam descompromissadas rodas de samba. Descobriu sons e composições que levou para o LP “De Pé no Chão”, o mais importante de sua carreira. Deu o primeiro passo para um novo capítulo da história do samba.

Não sossegou e continuou divulgando os craques daquela área: Jorge Aragão, Luiz Carlos da Vila, Almir Guineto, Arlindo Cruz, Sombrinha, Zeca Pagodinho —​a quem lançou em 1983 num duo em “Camarão que Dorme a Onda Leva”.

Foi então que virou a Madrinha do Samba. Com o tempo, o bonito título virou grilhão, e ela passou a exercê-lo sem parcimônia. Alguns artistas não ficaram à vontade no papel de afilhados. Mas ela também não se acomodou no rótulo.

Quando as rádios já estavam fechadas para o melhor samba e Beth há muito não vendia dezenas ou centenas de milhares de discos, ela de novo subverteu a ordem: levantou a bandeira do pagode (o de mesa, o de chão, não o dos estúdios cobertos de teclados) e voltou a cantar para grandes públicos. Os discos foram “Pérolas do Pagode” (1998), “Pagode de Mesa – Ao Vivo 1” (1999) e “Pagode de Mesa – Ao Vivo 2” (2000).

Faro para sucessos ela sempre teve, como provam “Coisinha do Pai” (1979), “A Chuva Cai” (1980) e “Firme e Forte” (1983). O conceito de sucesso é que mudou no país, frequentemente para pior.

Símbolo da carioquice, também gravou sambas de São Paulo (1993) e da Bahia (2007). Os discos dedicados às obras de Nelson Cavaquinho (2001) e Cartola (2003) foram mais previsíveis, mas nem por isso menos significativos.

Cantou de cadeira de rodas, cantou deitada, sambou como foi possível na cama do hospital. Fez do samba sua opção de vida e da vida uma permanente transformação. Mais do que boa cantora, Beth foi alguém que melhorou a qualidade e o caráter da música brasileira e do Brasil.

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